Quando o arqueólogo Ezequiel Nicolau chegou à aldeia de Mantiria, encontrou uma pequena multidão que o saudava num terreiro de areia branca, à sombra da grande mafurreira. Apresentou-se o visitante, explicou a sua intenção. Todos entenderam quem ele era. Ninguém percebeu o que vinha fazer. Sabiam que o doutor estudava os antigamentes. Sim, isso era claro. Mas andar a escavar o chão, isso não tinha cabimento. Abrem-se covas para semear morto, erguer casa, deitar semente. E há um outro serviço: antes que uma vida comece, abre-se no chão uma fenda para deitar as sobras do parto. Agora, esgravatar o chão para desenterrar o tempo? Não cabe na cabeça de ninguém. O homem queria encontrar o passado? Procurasse dentro das pessoas. Escutasse conversas entre os vivos e os mortos. E se tudo isso não servisse, usasse o sonho, que, como todos sabem, é uma pá para escavar lembranças.
Ezequiel Nicolau agradeceu a amabilidade dos aldeões e pediu as devidas licenças. Sabia que no caminho para Mantiria tinha sido enterrado um rei que governara aquela região há mais de dois séculos. Os presentes entreolharam-se, intrigados. Que houvesse um rei sepultado, isso não causava espanto. O que não falta por aí são reis cobertos de terra e esquecimento. A dúvida era outra: como é que o doutor sabia o lugar da sepultura? O arqueólogo tirou da mochila um computador e ergueu-o como num tribunal se exibem as provas de acusação. Explicou como aquele aparelho, sem sair do seu lugar, espreitava, media e fotografava o mundo inteiro. Isso já conhecemos, disse uma mulher. O meu filho trabalha na cidade e prometeu que nos ia enviar uma máquina dessas. Diz ele que está cheia de teclas, mas tira boas fotos, acrescentou a mulher.
E como prevalecesse um sentimento de desconfiança, o chefe da aldeia, Damião Nsala, usou da palavra:
– Não é falta de respeito, meus irmãos. O serviço deste doutor é, faz conta, um coveiro ao contrário.
– Cá para mim, ele é um mineiro disfarçado, comentou um outro. Esse doutor vem roubar as nossas riquezas.
– Não temos nada para ser roubado, comentou uma mulher. Nem por baixo nem por cima do chão.
A conversa demorou toda a manhã, até que o chefe da aldeia proclamou aquilo que ele apresentou como sendo “o consenso geral”. O passado tem donos, disse ele, com solenidade. Neste caso, prosseguiu o chefe, os donos estavam muitíssimo ausentes. Podiam ser chamados, mas isso pedia farinha, bebida e uma cabeça de cabrito.
Susa Monteiro |
Na manhã seguinte, toda a aldeia se juntou à espera de que o arqueólogo se apresentasse ao trabalho. E como ele demorasse a sair da tenda, houve quem comentasse: para esses da cidade, a madrugada começa a meio da manhã. Até que viram Ezequiel a emergir na estrada, arrastando duas pás e uma picareta. Assim carregado, o visitante parecia a pessoa mais sozinha do universo. As mãos pesavam-lhe no corpo, os pés pisavam cegamente os capins como se tivesse medo do chão. A aldeia inteira seguiu as passadas do intruso, olhos presos em cada um dos seus gestos. E todos pararam quando ele escolheu um lugar para abrir uma cova.
Mangas arregaçadas o doutor elevou a pá para desajeitadamente a deixar cair, num gesto frouxo, a lâmina resvalando na superfície da terra. Esse homem, disse Damião, não se dá bem com o corpo dele. O chefe da aldeia deu um passo em frente e, sem cerimónias, ergueu a picareta para a afundar vigorosamente junto aos pés do visitante. Começa-se com a picareta, segredou ele ao ouvido do visitante. E os golpes sucederam-se com doce firmeza, como quem, sobre o ventre da terra, decepa um antigo cordão umbilical.
Embaraçado, o doutor entregou a pá a um outro camponês que, de imediato, se juntou à escavação. Sincopadamente, pá e picareta percutiam nas escuras entranhas como se nelas morasse um oculto tambor. Quando a cova começou a ganhar fundura, Damião suspendeu o trabalho para anunciar: aqui, já é ontem. E depois de umas pazadas, voltou a parar e anunciou: agora, chegamos ao depois de ontem.
– O doutor não sente medo?, perguntou Damião ao historiador.
– Medo?
– Medo de encontrar o que tanto procura?, insistiu o chefe da aldeia. É que esse rei vai mandar em si durante o resto da sua vida.
– Já não sobrevive nem poeira daquele que aqui reinou, vaticinou Ezequiel. Uns artefactos é o que irei recolher.
– Não sei, doutor, comentou o chefe. Ninguém morre nunca totalmente.
Escurecia quando o trabalho foi suspenso. Todos regressaram a suas casas. À luz de uma lanterna, Ezequiel Nicolau fazia anotações no seu caderno de viagem, quando sentiu que alguém se aproximava. Abriu o zipe da tenda e espreitou no escuro: um homem alto com uma longa túnica branca sacudia-se como se fosse um fantasma. Vinha receber dinheiro. Não era para ele. Era para uma nova cerimónia com os antepassados.
– Já paguei ao Damião, disse o arqueólogo.
– O Damião só é chefe da parte do dia, esclareceu o visitante. À noite, sou eu que mando.
– Meu caro amigo: sou um cientista do Museu Nacional. Não temos dinheiro nem para pagar salários.
– Nós aqui da aldeia não queremos ser o vosso museu, argumentou o chefe noturno. Que tal se fôssemos abrir buracos lá para a sua rua, na cidade?
Foi então que o arqueólogo Nicolau prometeu solenemente: se a pesquisa viesse a dar resultados, o chefe, aliás os chefes, aliás toda a aldeia, seriam devidamente compensados.
No dia seguinte, todos os aldeões, incluindo o chefe noturno, dedicaram-se a afundar a cova. O arqueólogo travava os ímpetos, recomendava mil cuidados: são delicadas as reminiscências dos antigos reis. De repente, como que por milagre, o fundo da cova encheu-se de água. Escutou-se o murmúrio surdo de um subterrâneo rio assaltando o vazio. Alguém murmurou: vai ver que lhe cortamos uma veia. Ezequiel Nicolau era a imagem da desolação. Tanto esforço para nada. E desabou sob o peso da tristeza. E lembrou-se das palavras da sua velha mãe: há momentos em que Deus ensina quanto o joelho precisa do chão. Quando reergueu o rosto, ele viu, espantado, como os aldeões festejavam. Estava ali, no fundo daquele buraco, aquilo que eles buscavam. O rei, o nosso rei!, gritavam. E todos imitaram o gesto do arqueólogo: ajoelharam-se e deram graças a Deus.
– Que rei?, perguntou o doutor, quase sem voz.
– Esta água, doutor, declarou, eufórico, Damião. Esta água é o rei.
As pessoas cantaram e dançaram usando as enxadas para marcar o compasso. Puxaram pelos braços do arqueólogo e fizeram com que ele partilhasse daquela celebração. Aos poucos, o cientista foi-se deixando possuir pela alegria geral. Afinal, pensou o historiador, reinava ali uma outra visão do mundo. Uma visão mais poética, mais pura e mais profunda. Naquele mundo, os mortos permanecem vivos. E nada pode ser mais vivo do que água.
No dia seguinte, o historiador fez as malas, arrumou a tenda na bagageira do carro e já acenava um vasto adeus quando foi interpelado pelos dois chefes.
– Não se esqueça da promessa, meu boss, disse um deles.
– Afinal, estamos todos felizes com o resultado da nossa cova, declarou o outro.
Ezequiel Nicolau colocou chapéu e óculos escuros. Enterrava no rosto uma sombra que nem o mais atento dos arqueólogos seria capaz de detetar. E havia um rei que nascera e morrera dentro dele naquele dia.
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