Quando a minha irmã se inscreveu na escola de condução, o meu pai comprou um Fiat 600, muito velhinho, para que ela pudesse treinar na praceta o ponto de embraiagem e a caixa das mudanças. Batizámo-lo carinhosamente de Boguinhas. Eu, ainda estudante de Direito, teria de não reprovar e de esperar pelo fim do curso para que ele me oferecesse também a carta.
Susa Monteiro |
O meu pai não era de dar presentes. Houve três, no entanto, que me prometeu, tentando moldar-me à imagem do que ele gostava de ter sido: um relógio de pulso se eu passasse com distinção na quarta classe, uma viagem à Metrópole se eu estivesse no quadro de honra no quinto ano do liceu, a carta de condução e um carro se eu acabasse o curso de Direito sem reprovar. Em bicos de pés, cresci orgulhosa sobre o balcão para ver melhor os modelos de relógio apresentados pelo empregado da ourivesaria da Baixa de Luanda e escolhi um Timex de bracelete branca. Em 1980, já não havia Metrópole nem liceu nem quadro de honra nem dinheiro lá em casa, mas ainda assim, quando terminei o nono unificado, tive direito a dois vestidos, um de folhos aos quadrados azuis, outro de linho branco e, mais importante, pude ir a Lisboa comprá-los aos Porfírios, a loja das escadas em caracol e das luzes psicadélicas de que tanto ouvira falar. Ainda não tinha feito a última oral do curso quando o meu pai chegou a casa ao volante de um Nissan Micra cor de tijolo, acabadinho de sair do stand, Agora só falta tirares a carta, disse, oferecendo-me as chaves, Ainda não te esqueceste de como se conduz, pois não?
Anos antes, eu espreitava pela janela e lá estava o Boguinhas, parado à porta com o seu ar de cachorro. Eu queria tanto aprender a conduzir. Poder ir sozinha aonde quisesse, não à velocidade das minhas pernas, mas à das rodas que os nossos audaciosos antepassados haviam conseguido acrescentar-nos, era então a minha ideia de independência. Saía à rua, rondava o carro, sentava-me ao volante, carregava no grande botão redondo do lado esquerdo do mostrador do conta quilómetros onde um ponteiro vermelho indicava impaciente o zero, o motor engasgava-se, outra vez, outra vez, o Boguinhas ligava-se com uma sacudidela que parecia mesmo, Vamos? Um dia acabei por fazer-nos a vontade. Devagarinho, aos solavancos, a manete das mudanças parecia um pau solto numa engrenagem lassa, o Boguinhas roncava queixoso do meu pé pesado, ia-se abaixo, eu tinha medo de chamar a atenção dos vizinhos, mas não desistia, tinha de conseguir. Dias depois, excessivamente confiante na minha capacidade e sabedoria, como só a ignorância permite, atrevi-me a descer até ao centro de Cascais, um susto numa curva, uma buzinadela de um condutor indignado com a minha aselhice, e lá fui eu, o meu coração a estremecer tanto quanto o carro. Não sabia o que nos desassossegava mais, se o medo de ser apanhada pela Polícia se a emoção de entrar pela N247, em direção ao Guincho.
Quando a minha irmã tirou a carta e deixou de haver justificação para termos o Boguinhas, convenci o meu pai a não o vender, o valor comercial era nenhum e servir-me-ia dali a uns anos para treinar a condução. Todos sabiam que eu conduzia o Boguinhas, mas nem eu nem os meus pais falávamos disso. Tornou-se um daqueles assuntos familiares de que ninguém fala, que se finge que não existem, que se deixa estar. Entre reprovação e indiferença, vergonha e vaidade, o silêncio é a gentil arma com que, em família, ora nos protegemos ora atacamos. E o Boguinhas ficou.
Meses depois, num fim de tarde, peguei no carro e fui até aos Oitavos. Era o meu sítio preferido. Parava o Boguinhas lá no alto e deixava-me ficar perante a imensidão marítima que se derramava, impossivelmente brilhante, até se juntar com o céu. Ainda não havia o hotel de luxo nem a casa de chá, apenas um restaurante modesto que estava quase sempre fechado. E um ou outro carro com pares de namorados desinteressados de tudo o que os rodeava. Nesse dia não apareceu nenhum. Ali estive a remendar o meu passado e a carpinteirar o meu futuro, como tanto gostava de fazer. Já quase não havia luz quando pus o Boguinhas a funcionar. Andou um par de metros, soluçou como se tivesse desaprendido o seu barulho habitual e desligou-se. As minhas tentativas desesperadas de o devolver à estrada de nada serviram, ali ficou mudo e quedo. No dia seguinte, o meu pai apercebendo-se do perigo que eu havia corrido na solitária caminhada noturna para casa, disse, Já chega. Não voltei a ver o Boguinhas.
Dois anos depois de o meu pai me ter dado o Micra, deixei praticamente de conduzir. Mais do que uma decisão, um conjunto de circunstâncias foram-me empurrando nesse sentido. Durante quase trinta anos conduzi apenas em dois curtos e excecionais períodos: quando o Luís partiu o pé, em 2004, e quando vivi em Las Vegas, em 2008. Recomecei agora a conduzir. Outra vez o medo, a cautela, a atenção à estrada. O carro é de novo uma armadura gigante que controlo a custo, um corpo ainda desligado do meu. Outra vez, também, o convívio delicado entre independência e solidão.
Já comprei um carro. Aguardo ansiosamente que ele chegue. Sei que o meu pai arranjará maneira de me acompanhar na viagem inaugural.
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