A editora aceitou a desistência de Marieke, pediu desculpa e logo se prontificou a encontrar tradutores negros. Muita gente viu nisto uma cedência inaceitável à ala mais conservadora do pensamento politicamente correto. O escritor angolano João Melo reagiu assim no Instagram: “Antirracismo ou racismo? Na Holanda, uma ativista negra insurgiu-se contra o fato da tradutora local da jovem poeta Amanda Gorman ser branca. Uma patetice, que reforça o racismo antinegro. Eu, por exemplo, seria proibido de traduzir Shakespeare. O antirracismo não é isto. A polêmica é uma caricatura grotesca do antirracismo, enfraquecendo a luta contra todas e quaisquer formas de descriminação com base na cor da pele. Lamentável.”
Antes de concordar com João Melo parece-me importante escutar todos os argumentos de Janice Deul. Diz ela que os tradutores negros têm dificuldade em encontrar trabalho, da mesma forma que é mais difícil para os escritores não brancos conseguirem ser publicados. É possível que tenha razão no que diz respeito aos tradutores literários. Já quanto a escritores a situação alterou-se muito nos últimos anos. O imenso sucesso de Chimamanda Adichie, Bernardine Evaristo, Zadie Smith, Marlon James e tantos outros despertou o interesse das grandes editoras norte-americanas e europeias pelos escritores de ascendência africana. Este movimento teve reflexos também no Brasil, onde autores como Djamila Ribeiro, Itamar Vieira Júnior ou a angolana Grada Kilomba vêm frequentando as tabelas dos mais vendidos
Há um outro argumento: uma autora negra deveria ser traduzida por alguém que partilhasse com ela a experiência da discriminação. Entre dois tradutores com idêntica competência, também eu preferiria um que dividisse comigo certas memórias. Contudo, ser negro nos Estados Unidos não é o mesmo que na Holanda. Basta pensar que um negro americano não precisa defender a sua pertença ao país. Já um europeu de ascendência africana tende a ser constantemente questionado. Nenhum holandês negro é apenas holandês. Regra geral, forçam-no a uma identidade hifenizada.
Concordo com João Melo quando afirma que o tipo de proposta defendido por Janice Deul ridiculariza o movimento antirracista. O mais curioso em todo o episódio é que a própria Amanda já havia aprovado a escolha de Marieke. Ao tentar ser mais papista que o papa, Deul pode ter dado um tiro no pé. Ou não. Talvez seja tempo de reconhecer que os interesses do movimento antirracista, e de outros movimentos progressistas, não são os mesmos do pensamento politicamente correto.
José Eduardo Agualusa
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