Chove sobre os buracos mal tapados da avenida a essa hora vazia (são quatro da madrugada), chove sobre os postes como uma chuva prateada que metralha o ar de brilho, e eu me pergunto quantos têm atravessado a noite em claro, por insônia ou por assombro ou por vigília, quantos perdidos por um fio se sustentando, e ainda sorrindo entre o gentil e o delirante, e agora a chuva engrossa, se enviesa com o vento, enverga os galhos das árvores velhas da avenida, chove toda a escuridão do céu nessa chibata d’água que chamamos bátega, e eu me pergunto quantos dos que estão dormindo amanhã acordarão descansados, e quantas mais serão as baixas, e quanto tempo de apneia até subir de volta à tona, quanto tempo sem governo nos guiando uns aos outros, e quanto do nosso falso cotidiano não é já uma prévia de partida, quanto do nosso olá não é só melancolia, agora passa um carro solitário na avenida, levantando a água do asfalto num chiado longo que começa a abrir o dia, e como é que discordamos da toada deprimente, como que ainda desafinamos da realidade corrente, como esse súbito azul limpo sobre as nossas cabeças, que loucura de beleza, que prazeres de Pompeia, que amor triste de Hiroshima ainda nos faz vivos por dentro?, contra essa vida sonâmbula, contra esse fim dos tempos todo tempo, que Rilke na mochila, que canção, que carinho, que olhos na medalha ainda nos dão ganas de viver?, e agora passa o primeiro ônibus da manhã, num chacoalhar de máquina oca, vai acordando uma cidade fantasmagórica, a chuva de há pouco já é quase mentira, e eu só me pergunto quais palavras estão quentes, quais os nomes do desejo que ainda vibram, qual sonho ativo, qual ave livre de medo, qual fé ferrenha, qual passo aéreo, qual alegria.
Mariana Ianelli
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