sexta-feira, março 19

Vamos ler!

Quando eu andava pelos meus onze ou doze anos, começara havia pouco o liceu, ouvia os meus colegas mais abastados falar, com muito entusiasmo, de livros de Júlio Verne, Emílio Salgari, do famoso detective Sherlock Holmes, de Robert Louis Stevenson – A Ilha do Tesouro – e outras coisas neste género. O que eles me contavam desses livros deixava-me literalmente com água na boca. O meu pai não tinha, nessa altura, folga financeira para me comprar livros, para além dos escolares, e os que às vezes os amigos me ofereciam, pelos meus anos, não pertenciam, nem de longe, àquela categoria apetecida. Eu sentia, em mim, uma terrível e insatisfeita fome de leitura. Lembrem-se de que, nessa altura – era o começo da década de quarenta do século passado – não havia televisões nem computadores porque ainda não tinham sido inventados. Em minha casa, não existia nem telefone nem telefonia. Portanto, os recursos de que dispunha para me entreter ou me informar sobre o que ia pelo mundo eram muito limitados. Havia, felizmente, o cinema, com a projecção das chamadas “Actualidades”, antes do filme principal. Mas, mesmo aí, encontrava-me reduzido às “borlas” do Scala, porque o Gil Vicente, onde teria de comprar bilhete, me estava vedado.



As férias grandes, de Junho a Setembro – inverno suave e sem chuvas, em Moçambique - eram longuíssimas, para as passar destituído de meios com que me entreter (exceptuando, é claro, as matinés no Scala). Felizmente, descobri um baú enorme e abandonado na garagem da casa, onde, em vez do carro que não tínhamos, havia uma imensa tralha de coisas mais ou menos sem préstimo, entre as quais o referido baú. Dentro deste se encontravam montanhas de selos e, sobretudo, dezenas e dezenas de números de uma revista brasileira, com um título que era um verdadeiro chamariz: VAMOS LER! A revista, de que cada exemplar era extremamente volumoso, continha reportagens, verbetes dedicados a grandes escritores do passado e do presente (daquele presente!), contos de autores famosos, como Machado de Assis, Eça de Queirós, Lima Barreto e outros escritores estrangeiros, novelas policiais excitantes e até peças de teatro: foi ali que, pela primeira vez, deparei com as empolgantes e trágicas peças de teatro, de ambiente marítimo, de um grande e intrigante dramaturgo americano: Eugene O’Neill. Pouco depois, viria a ler algumas das suas mais famosas e longas peças, em tradução de Henrique Galvão, e só mais tarde leria quase todo o seu teatro no original. À falta de livros, fui-me embrenhando na boa e variada literatura que a revista me oferecia. “Vamos ler”, dizia o título da revista – e foi isso mesmo que me dispus a fazer: ler. Fui lendo, inclusivamente coisas em princípio muito acima da minha idade.

(...)

Para ler, qualquer sítio serve. Uma cadeira, um sofá, um degrau de escada, a areia de uma praia, o banco de um comboio ou o assento de um avião, até numa fila de espera de um museu, com a neve a cair-nos em cima, como vi, em Moscovo, quando lá fui num inverno. Os grandes leitores conseguem ler em qualquer lado. André Gide, talvez por masoquismo de protestante, escolhia, para ler e até para escrever, os nichos mais desconfortáveis da sua casa, na Rue Vaneau, em Paris. Mas, tudo visto, o que sobretudo me seduziu, como lugar de leitura, ao longo da vida, foi uma cama. Durante toda a minha infância, juventude e alguma maturidade, li na cama, mais do que em qualquer outro sítio. Logan Pearsall Smith, ensaísta inglês, de origem americana, conhecido pelos seus acutilantes aforismos e epigramas, gostava de dizer: “Dêem-me um livro e uma cama e estou perfeitamente feliz.” E o mesmo Logan Pearsall Smith ia até mais longe, quando não hesitava em afirmar: “As pessoas dizem que o que vale a pena é viver, mas eu prefiro ler.” Na cama, claro. Receio, porém, não ter esgotado a variedade de sítios onde se pode ler. Henry Miller, desbocado como era seu costume, informava: “Todas as boas leituras que fiz, pode dizer-se, foram feitas na retrete.” Que é, de facto, um dos mais assíduos locais de aquisição de cultura. Negue-o quem puder. De resto, esta afinidade entre cultura (aquisição da) e sanita foi sumptuosamente afirmada por um nosso ministro da cultura, por acaso o melhor de todos eles, ao mandar aprimorar, no ministério da dita, uma sanita de luxo, com requintes de palácio de sheik milionário. Críticos ignaros, pouco lidos em clássicos como o autor de Trópico de Câncer, difamaram o investimento gigante na sanita, mal suspeitando que é em tais loci que a cultura prospera! De qualquer modo, o grande leitor, o que se deixa absorver por um bom romance, uma peça de teatro, um belo poema, um bom e apaixonante ensaio, lê em qualquer sítio: num comboio, num automóvel, num buraco de obus, em pleno bombardeamento… Não estou a exagerar. O escritor francês, André Gide era não só um grande escritor, mas era também um grande e insaciável leitor. A leitura absorvia-o de tal maneira, que se alheava de tudo o resto, enquanto lia Tolstoi ou Ovídio. Um dia, foi fazer, com amigos, uma viagem de automóvel por vários países europeus. Levava consigo o romance Guerra e Paz, de Tolstoi. Ia tão absorvido na leitura, que, de uma vez, tendo eles chegado a um museu importante, que tencionavam visitar, os amigos saíram do carro, estacionado próximo do referido museu. Gide, embora tivesse manifestado muito interesse em o visitar, encontrava-se tão “apanhado” pela grande narrativa do escritor russo, que pediu aos amigos que fossem e o deixassem no carro, imerso na leitura, que não conseguia interromper. São estes os grandes leitores, que têm, na leitura, um prazer intenso e nunca desfrutado pelos indivíduos que raramente abrem um livro.

O escritor francês, Claude Roy, notável romancista, ensaísta e diarista, era também um formidável e arguto leitor. Num dos seus livros conta uma pequena história de guerra, durante o conflito que devastou a Europa, de 1940 a 1945. Num momento em que uma unidade aliada se encontrava debaixo de fogo intenso da artilharia alemã, Claude Roy saltou para um buraco de obus, no qual se encontrava já outro soldado. Para seu grande espanto, verificou que o companheiro de abrigo parecia completamente alheio ao inferno de ferro e fogo que os cercava e passava por cima das suas cabeças. Intrigado, tentou perceber o que se passava e acabou por ver que o seu parceiro se encontrava completamente absorvido na leitura dum romance de Richard Hughes, que relatava uma tempestade a bordo de um navio, no mar alto. Tão embrenhado estava naquela tempestade fictícia, que nem dava pelo inferno real que o ameaçava. É isto que a grande ficção faz aos grandes leitores: envolve-os por completo, obturando qualquer contacto com o mundo real. Conta-se que Balzac, no leito de morte, pediu que lhe chamassem o grande médico, Bianchon, porque só ele seria capaz de o salvar. Ora Horace Bianchon nunca tinha existido, era apenas um personagem da Comédie Humaine, criado pela imaginação portentosa de Balzac. Mas tão real e intenso se tinha tornado, até para o seu criador, que, naquele momento crucial, saltara do papel para a vida real, tornando-se o único médico capaz de curar o moribundo prodigioso. Balzac era um enorme criador de mundos alternativos em que não só o leitor acreditava, como ele próprio também. Conta-se que Flaubert, ao escrever a cena do suicídio de Emma Bovary, com arsénico, se encontrava tão dentro dela, que vomitou, como se tivesse sido ele a ingurgitar o veneno. Eis um criador que acreditava mesmo na sua criação! Como é que os leitores não haviam de fazer o mesmo?
Eugénio Lisboa, "Vamos Ler!"

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