quinta-feira, março 18

O aroma das mangas

Vejo-o sempre ali, sentado num banco de madeira, junto à sólida estátua de Vasco da Gama. Malan foi guerrilheiro, curandeiro, taxista, camionista, contrabandista, traficante de drogas, de armas e de animais exóticos. Agora contempla o mar. Estendido aos pés do velho macua, o tempo rói os ossos brancos do dia. Rosna, quando alguém se aproxima.

Dizem que ao redor de Malan cada minuto dura uma hora, eventualmente mais. Um dia, um garoto lançou uma pedra contra o outro. O segundo menino, adestrado no jogo da sobrevivência, evitou habilmente a pedra, e esta prosseguiu o seu trajeto, em direção ao crânio liso do velho. Nunca o alcançou. Foi perdendo velocidade, à medida que se aproximava dele, até ficar, por fim, pairando no ar. Então, como os heróis de Matrix, Malan ergueu a mão direita e apanhou a pedra.


Sento-me num banco, diante do de Malan. Abro um livro, começo a ler um romance cubano e, seja pelo romance, que me leva para um outro mundo, muito diverso do meu, seja por estar tão próximo do antigo traficante, sinto que o tempo se expande e se dilui, como sal na água.

A vida de Malan é um grande ruído acontecendo sem ruído, como os rios que correm sob a superfície da Lua. Antes de exercitar-se na arte de expandir o tempo, Malan correu atrás dele. Queria tudo. E queria tudo imediatamente. O que sei sobre o passado de Malan recolhi-o das ruas, aqui e ali, em fragmentos dispersos. Por várias vezes, tentei conversar com ele, mas nunca consegui que confirmasse ou negasse esses rumores.

Dizem que:

1. Parecia mais velho quando era jovem. Na época, vivia com medo de morrer. Somos jovens quando nos esquecemos da morte, e isso pode ocorrer em qualquer idade. Agora, enquanto contempla o mar, Malan apenas contempla o mar. Sorri. É quase um menino quando sorri.

2. Aprendeu a disparar uma arma antes de aprender a ler.

3. Durante a guerra tornou-se feiticeiro. Isso não deveria surpreender ninguém. A magia sempre se deu bem com a guerra. Malan foi melhor feiticeiro do que soldado.

4. Depois da guerra, foi taxista e camionista. Compreendeu que poderia fazer muito mais dinheiro transportando bens não essenciais, e depois bens não exatamente legais até chegar às mercadorias totalmente ilegais. Num turvo amanhecer de julho, há 15 anos, a polícia encontrou 65 pangolins escondidos em caixas de madeira, sob um carregamento de folhas de moringa, no camião que ele conduzia. “É uma infestação!”, alegou Malan. Ficou três anos preso.

5. Na prisão, Malan encontrou a paz. A cela tinha uma fenda (seria excessivo chamar-lhe janela), a partir da qual o antigo guerrilheiro conseguia espreitar o Índico. Naquela réstia de mar descobriu toda a luz do universo.

Estávamos ali, Vasco da Gama em pé e eu e Malan sentados, ele contemplando o mar, e eu lendo o meu romance cubano. Então, o antigo guerrilheiro moveu o rosto, pousando em mim uns olhos pequenos, ainda deslumbrados pela luz esmeralda do mar:

– Uma ocasião, no tempo da guerra, vi uma mulher com uma árvore às costas…

Fez uma pausa. Debrucei-me para ele. O tempo abrandou:
– Uma mulher com uma árvore às costas?
– Uma mangueira. Ela carregava um vaso grande, de barro, com uma mangueira. Não um pé de mangueira.

Era uma mangueira pequena mas frondosa, com mangas maduras. A mulher caminhava pisando a sombra da mangueira.

Fechei os olhos para melhor ver a mulher. Vi primeiro a estrada, uma ferida vermelha abrindo-se por entre o fulgor cruel das espinheiras. Vi os guerrilheiros esfarrapados, segurando com esforço o desalento das armas. E, então, lá estava ela, uma figura frágil e firme, erguendo contra os soldados os largos olhos febris.

– Deixem-na passar! – ordenou Malan.

E a mulher passou.

– Todo o meu serviço é de esquecimento – murmurou o antigo feiticeiro. Abri os olhos e encontrei os dele. – A ela não consigo esquecer. Agora vai você carregar essa lembrança. É sua!

Disse isto e voltou a olhar o mar. Achei-o subitamente mais leve e mais longínquo. Levantei-me. Dei dois passos vagos, assustados, consciente de que me deixara cair numa armadilha.

Agora aquela mulher vive comigo. Fecho os olhos e vejo-a, carregando aos ombros uma árvore cada vez maior e mais frondosa. Posso sentir o aroma das mangas, enquanto os passos dela ecoam nos meus sonhos.


Não sei como se chama. Não sei porque percorre as estradas levando uma árvore às costas.ou.

– Todo o meu serviço é de esquecimento – murmurou o antigo feiticeiro. Abri os olhos e encontrei os dele. – A ela não consigo esquecer. Agora vai você carregar essa lembrança. É sua!

Disse isto e voltou a olhar o mar. Achei-o subitamente mais leve e mais longínquo. Levantei-me. Dei dois passos vagos, assustados, consciente de que me deixara cair numa armadilha.

Agora aquela mulher vive comigo. Fecho os olhos e vejo-a, carregando aos ombros uma árvore cada vez maior e mais frondosa. Posso sentir o aroma das mangas, enquanto os passos dela ecoam nos meus sonhos.

Não sei como se chama. Não sei porque percorre as estradas levando uma árvore às costas.

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