sexta-feira, julho 29
O filho do homem
Houve a guerra e vimos desmoronar muitas casas e agora não nos sentimos mais seguros em casa como antes, quando estávamos quietos e seguros. Há algo de que não se cura, e os anos vão passando, mas não nos curamos nunca. Quem sabe teremos de novo uma luminária sobre a mesa e um vaso de flores e os retratos dos nossos queridos, mas não acreditamos mais em nenhuma dessas coisas, porque antes tivemos de abandoná-las de repente ou as procuramos em vão entre os escombros.
É inútil acreditar que podemos sair curados de vinte anos como aqueles que passamos. Os que foram perseguidos nunca mais reencontrarão a paz. Um toque insistente de campainha à noite não pode significar outra coisa para nós que não a palavra “delegacia”. E é inútil dizer e repetir a nós mesmos que por trás da palavra “delegacia” agora talvez haja rostos amigáveis, a quem poderíamos pedir proteção e assistência. Em nós essa palavra sempre provoca desconfiança e assombro. Se observo meus meninos dormindo, penso com alívio que não precisarei acordá-los no meio da noite para fugir. Mas não é um alívio pleno e profundo. Sempre acho que mais cedo ou mais tarde precisaremos nos levantar de novo na noite e escapar e deixar tudo para trás, quartos quietos e cartas e lembranças e roupas.
Uma vez sofrida, jamais se esquece a experiência do mal. Quem viu as casas desabando sabe muito bem quanto são precários os vasos de flor, os quadros, as paredes brancas. Sabe muito bem de que é feita uma casa. Uma casa é feita de tijolos e argamassa, e pode desabar. Uma casa não é tão sólida. Pode desabar de um momento para outro. Atrás dos serenos vasos de flor, atrás das chaleiras, dos tapetes, dos pavimentos lustrosos de cera há o outro vulto verdadeiro da casa, o vulto atroz da casa caída.
Não nos curaremos nunca desta guerra. É inútil. Jamais seremos gente tranquila, gente que pensa e estuda e modela sua vida em paz. Vejam o que aconteceu com nossas casas. Vejam o que aconteceu com a gente. Nunca vamos ser gente sossegada.
Conhecemos a realidade em sua face mais terrível. Mas já nem sentimos mais desgosto. Ainda há alguns que se queixam de que os escritores se servem de uma linguagem amarga e violenta, que contam coisas duras e tristes, que apresentam a realidade em seus termos mais desolados.
Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em nenhuma das coisas que fazemos. E talvez este seja o único bem que nos veio da guerra. Não mentir e não tolerar que os outros mintam a nós. Assim somos, os jovens de agora, assim é a nossa geração. Os mais velhos ainda são muito apegados à mentira, aos véus e às máscaras que recobrem a realidade. Nossa linguagem os entristece e ofende. Não entendem nossa atitude diante da realidade. Nós estamos perto da substância das coisas. Esse é o único bem que a guerra nos deu, mas só nos deu a nós, jovens. Aos outros, mais velhos que nós, a guerra só trouxe insegurança e medo. E também nós, os jovens, temos medo, também nós nos sentimos inseguros em nossas casas, mas não estamos indefesos diante desse medo. Temos uma dureza e uma força que os outros, antes de nós, jamais conheceram.
Para alguns a guerra só começou com a guerra, com as casas desmoronadas e os alemães, mas para outros ela começou antes, desde os primeiros anos do fascismo, e por isso a sensação de insegurança e de permanente perigo é ainda maior. O perigo, a sensação de precisar se esconder, a sensação de precisar deixar de repente o calor da cama e das casas, começou, para tantos de nós, há muitos anos. Insinuou-se nas diversões juvenis, nos acompanhou nos bancos de escola e nos ensinou a ver inimigos em todo lado. Assim foi para muitos de nós, na Itália e em outros lugares, e se acreditava que um dia poderíamos caminhar em paz pelas ruas de nossas cidades; mas hoje, quando talvez possamos caminhar em paz, hoje nos damos conta de que não nos curamos daquele mal. Assim somos constrangidos a buscar sempre novas forças, sempre uma nova dureza para contrapor a qualquer realidade. Somos impelidos a buscar uma serenidade interior que não nasce dos tapetes e dos vasos de flor.
Não há paz para o filho do homem. As raposas e os lobos têm seus covis, mas o filho do homem não tem onde pousar a cabeça. Nossa geração é uma geração de homens. Não é uma geração de raposas e de lobos. Cada um de nós teria grande vontade de pousar a cabeça em algum lugar, cada um gostaria de ter uma pequena toca enxuta e aquecida. Mas não há paz para os filhos dos homens. Cada um de nós uma vez na vida se iludiu achando que podia dormir sobre qualquer coisa, apossar-se de uma certeza qualquer, de uma fé qualquer, e então repousar o corpo. Mas todas as certezas de antes nos foram arrancadas, e a fé jamais será algo em que enfim se possa mergulhar no sono.
E agora somos gente sem lágrimas. O que comovia nossos pais já não nos comove nada. Nossos pais e as pessoas mais velhas que nos reprovam pelo modo como criamos os meninos. Queriam que mentíssemos aos nossos filhos como eles mentiam a nós. Queriam que nossas crianças se divertissem com bonecos de pelúcia em graciosos cômodos pintados de rosa, com arvorezinhas e coelhos estampados nas paredes. Queriam que cercássemos de véus e de mentiras a infância deles, que lhes ocultássemos cuidadosamente a realidade em sua verdadeira substância. Mas nós não podemos fazer isso. Não podemos fazer isso com crianças que acordamos no meio da noite e vestimos ansiosamente no escuro, para fugir ou nos esconder ou porque a sirene de alarme rasgava o céu. Não podemos fazer isso com crianças que viram o assombro e o horror em nossa cara. Não podemos começar a contar a essas crianças que elas foram trazidas pela cegonha, ou lhes dizer que os mortos partiram numa longa viagem.
É inútil acreditar que podemos sair curados de vinte anos como aqueles que passamos. Os que foram perseguidos nunca mais reencontrarão a paz. Um toque insistente de campainha à noite não pode significar outra coisa para nós que não a palavra “delegacia”. E é inútil dizer e repetir a nós mesmos que por trás da palavra “delegacia” agora talvez haja rostos amigáveis, a quem poderíamos pedir proteção e assistência. Em nós essa palavra sempre provoca desconfiança e assombro. Se observo meus meninos dormindo, penso com alívio que não precisarei acordá-los no meio da noite para fugir. Mas não é um alívio pleno e profundo. Sempre acho que mais cedo ou mais tarde precisaremos nos levantar de novo na noite e escapar e deixar tudo para trás, quartos quietos e cartas e lembranças e roupas.
Uma vez sofrida, jamais se esquece a experiência do mal. Quem viu as casas desabando sabe muito bem quanto são precários os vasos de flor, os quadros, as paredes brancas. Sabe muito bem de que é feita uma casa. Uma casa é feita de tijolos e argamassa, e pode desabar. Uma casa não é tão sólida. Pode desabar de um momento para outro. Atrás dos serenos vasos de flor, atrás das chaleiras, dos tapetes, dos pavimentos lustrosos de cera há o outro vulto verdadeiro da casa, o vulto atroz da casa caída.
Não nos curaremos nunca desta guerra. É inútil. Jamais seremos gente tranquila, gente que pensa e estuda e modela sua vida em paz. Vejam o que aconteceu com nossas casas. Vejam o que aconteceu com a gente. Nunca vamos ser gente sossegada.
Conhecemos a realidade em sua face mais terrível. Mas já nem sentimos mais desgosto. Ainda há alguns que se queixam de que os escritores se servem de uma linguagem amarga e violenta, que contam coisas duras e tristes, que apresentam a realidade em seus termos mais desolados.
Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em nenhuma das coisas que fazemos. E talvez este seja o único bem que nos veio da guerra. Não mentir e não tolerar que os outros mintam a nós. Assim somos, os jovens de agora, assim é a nossa geração. Os mais velhos ainda são muito apegados à mentira, aos véus e às máscaras que recobrem a realidade. Nossa linguagem os entristece e ofende. Não entendem nossa atitude diante da realidade. Nós estamos perto da substância das coisas. Esse é o único bem que a guerra nos deu, mas só nos deu a nós, jovens. Aos outros, mais velhos que nós, a guerra só trouxe insegurança e medo. E também nós, os jovens, temos medo, também nós nos sentimos inseguros em nossas casas, mas não estamos indefesos diante desse medo. Temos uma dureza e uma força que os outros, antes de nós, jamais conheceram.
Para alguns a guerra só começou com a guerra, com as casas desmoronadas e os alemães, mas para outros ela começou antes, desde os primeiros anos do fascismo, e por isso a sensação de insegurança e de permanente perigo é ainda maior. O perigo, a sensação de precisar se esconder, a sensação de precisar deixar de repente o calor da cama e das casas, começou, para tantos de nós, há muitos anos. Insinuou-se nas diversões juvenis, nos acompanhou nos bancos de escola e nos ensinou a ver inimigos em todo lado. Assim foi para muitos de nós, na Itália e em outros lugares, e se acreditava que um dia poderíamos caminhar em paz pelas ruas de nossas cidades; mas hoje, quando talvez possamos caminhar em paz, hoje nos damos conta de que não nos curamos daquele mal. Assim somos constrangidos a buscar sempre novas forças, sempre uma nova dureza para contrapor a qualquer realidade. Somos impelidos a buscar uma serenidade interior que não nasce dos tapetes e dos vasos de flor.
Não há paz para o filho do homem. As raposas e os lobos têm seus covis, mas o filho do homem não tem onde pousar a cabeça. Nossa geração é uma geração de homens. Não é uma geração de raposas e de lobos. Cada um de nós teria grande vontade de pousar a cabeça em algum lugar, cada um gostaria de ter uma pequena toca enxuta e aquecida. Mas não há paz para os filhos dos homens. Cada um de nós uma vez na vida se iludiu achando que podia dormir sobre qualquer coisa, apossar-se de uma certeza qualquer, de uma fé qualquer, e então repousar o corpo. Mas todas as certezas de antes nos foram arrancadas, e a fé jamais será algo em que enfim se possa mergulhar no sono.
E agora somos gente sem lágrimas. O que comovia nossos pais já não nos comove nada. Nossos pais e as pessoas mais velhas que nos reprovam pelo modo como criamos os meninos. Queriam que mentíssemos aos nossos filhos como eles mentiam a nós. Queriam que nossas crianças se divertissem com bonecos de pelúcia em graciosos cômodos pintados de rosa, com arvorezinhas e coelhos estampados nas paredes. Queriam que cercássemos de véus e de mentiras a infância deles, que lhes ocultássemos cuidadosamente a realidade em sua verdadeira substância. Mas nós não podemos fazer isso. Não podemos fazer isso com crianças que acordamos no meio da noite e vestimos ansiosamente no escuro, para fugir ou nos esconder ou porque a sirene de alarme rasgava o céu. Não podemos fazer isso com crianças que viram o assombro e o horror em nossa cara. Não podemos começar a contar a essas crianças que elas foram trazidas pela cegonha, ou lhes dizer que os mortos partiram numa longa viagem.
Há um abismo intransponível entre nós e as gerações anteriores. Os perigos que eles corriam eram irrisórios, e suas casas só desmoronavam muito raramente. Terremotos e incêndios não eram fenômenos que se verificassem com frequência e para todos. As mulheres tricotavam malhas, ordenavam o almoço à cozinheira e recebiam as amigas em casas que não desabavam. Cada qual meditava e estudava e esperava organizar sua vida em paz. Era um outro tempo, e talvez se vivesse bem. Mas nós estamos atados a esta nossa angústia e, no fundo, satisfeitos com nosso destino de homens.
Natalia Ginzburg, "As pequenas virtudes"
Natalia Ginzburg, "As pequenas virtudes"
quinta-feira, julho 28
Do livro não me livro
Eu do livro não me livroe nem quero me livrarse do livro, eu me livrocomo livre vou ficar?Silas Fonseca, "Alma, Versos & Coração"
O que ler a seguir
Quando estou de férias numa praia em que há ingleses, reparo com agrado que as crianças se fazem acompanhar quase sempre de um livro, por pouca idade que tenham. No Reino Unido os hábitos de leitura na infância estão completamente enraizados e isso pode também ser explicado pela quantidade de autores britânicos de excelência que escrevem para crianças há mais de um século. Dizem-me que em Portugal os mais novinhos também lêem bastante, mas que perdem esse bom costume na viragem para a adolescência ou um pouco mais tarde, pois não existe uma literatura de transição. Eu cá passei dos livros infantis para os de adulto, mas presumo que não seja assim com toda a gente. Encontrei, porém, esta ideia genial no Facebook de Nelson Ferreira da Silva (acompanhem-no, porque se encontram coisas muitíssimo interessantes entre o que divulga): usando as linhas de metro (e cada linha tem uma personalidade específica que corresponde ao género preferido por um determinado grupo), traça-se um percurso em que, depois de lido um livro (uma estação) se sugere passar a outro (a estação seguinte). Uma ideia que só podia ser inglesa, digo eu, gizada pela biblioteca infantil do Barbican Centre, e que seria maravilhoso que o nosso PNL, por exemplo, fizesse nas escolas portuguesas. E porque não para adultos também? Eu cá estou com dúvidas sobre o que vou ler a seguir...
Paulo Honório
Paulo Honório, concebido em 1924, nasceu em 1932. Narro essa longa gestação, por exigência de Condé, homem terrível e absurdo, que guarda fotografias e papéis inéditos de todo o gênero, da novela ao rol de roupa suja, do poema à carta de cobrança, autos de processo e correspondência amorosa, coisas obtidas pelos mais diversos meios: sorrisos, pagamento do café, do ônibus e do bonde, ameaças, gritos, carinhos, promessas, injúrias, cócegas, apresentação a cavalheiros ponderosos e chantagens, pois o monstro conhece fidalgos estrangeiros e funcionários da polícia. Para me extorquir estas declarações, Condé me ofereceu, antes de tudo, a glória. Como a sua coleção durará séculos, posso ter a certeza de que, senão a obra inteira, pelo menos uma das minhas personagens tomará pé no futuro. Em segundo lugar vem um assunto pecuniário: o malvado farejou o meu orçamento, percebe nele um desequilíbrio e dispõe-se a endireitá-lo.
— Com meia dúzia de penadas, V. ganha um dinheirão, filho de Deus.
O jeito que tenho é convencer-me, decidir contar a origem de Paulo Honório, alagoano, viçosense, chegado ao Rio há doze anos e hospedado na Ariel.
Aqui vai a tarefa. Em 1924, em Palmeira dos Índios, interior de Alagoas, encontrei dificuldade séria, pus-me a ver inimigos em toda a parte e desejei suicidar-me. Realmente julgo que me suicidei. Talvez isto não seja tão idiota como parece. Abandonando o contas-correntes, o diário, outros objetos da minha profissão, havia-me embrenhado na sociologia criminal. Que me induziu a isso? Teria querido matar alguns fantasmas que me perseguiam?
Naquele inverno de 1924, numa casa triste do Pinga-Fogo, sentado à mesa da sala de jantar, fumando, bebendo café, ouvindo a arenga dos sapos, o mugido dos bois nos currais próximos e os pingos das goteiras, enchi noites de insônia e isolamento a compor uma narrativa. Surgiu um criminoso, resumo de certos proprietários rijos existentes no Nordeste. Diálogo chinfrim, sintaxe disciplinada, arrumação lastimosa. Felizmente essas folhas desapareceram. Mas as preocupações que me afligiam desapareceram também, pelo menos adelgaçaram: ressurgi, desenferrujei a alma, tornei-me prefeito municipal. Aventuro-me a admitir, pois, que o suicídio se tenha de fato realizado.
Passaram-se anos. Deixei a prefeitura, vendi a loja, mudei-me para Maceió e fui bocejar, falar ao telefone e discutir literatura na Imprensa Oficial. Em consequência da bagunça revolucionária de 30, demiti-me — e no começo de 1932 arrastava-me de novo em Palmeira dos Índios, com vários filhos pequenos, sem ofício nem esperanças, enxergando em redor nuvens e sombras.
Nessa crítica situação voltou-me ao espírito o criminoso que em 1924 me havia afastado as inquietações — um tipo vermelho, cabeludo, violento, de mãos duras, sujas de terra como raízes, habituadas a esbofetear caboclos na lavoura. As outras figuras da novela não tinham relevo, perdiam-se a distância, vagas e inconsistentes, mas o sujeito cascudo e grosseiro avultava, no alpendre da casa-grande de S. Bernardo, metido numa cadeira de vime, cachimbo na boca, olhando o prado, novilhas caracus, habitações de moradores, capulhos embranquecendo o algodoal, paus-d’arco floridos a enfeitar a mata. E, sem recorrer ao manuscrito de oito anos, pois isto prejudicaria irremediavelmente a composição, restaurei o fazendeiro cru, à lápis, na sacristia da igreja enorme que o meu velho amigo padre Macedo andava a construir. Surgiam personagens novas, e a história foi saindo diversa da primitiva.
Até o capítulo XVIII tudo correu sem transtorno. Um dia de fevereiro, ao entrar em casa, senti arrepios. À noite, com febre, fiz o capítulo XIX, uma confusão que mais tarde, quando me restabeleci, conservei.
A doença prendeu-me à cama uns três ou quatro meses. Viagem a Maceió, exames, diagnósticos equívocos, junta médica, entrada no hospital, operação, quarenta e tantos dias com um tubo de borracha a travessar-me a barriga, delírios úteis na fabricação de um romance e de alguns contos, convalescença morosa.
Ao sair do hospital, com uma perna encrencada, coxo, na ferida ainda aberta uma tampa de esparadrapo, recomecei o trabalho, que fui terminar em Palmeira dos Índios, na minha casa do Pinga-Fogo, ouvindo os sapos, a ventania, os bois de seu Sebastião Ramos. Às vezes meu pai me visitava carrancudo, largava uns monossílabos. A carranca e fragmentos de velhas narrações dele combinaram-se na edificação de Paulo Honório. Infelizmente esse colaborador morreu em 1934 e não chegou a ler o romance.
A língua, as imagens rurais, apanhei-as em consultas pacientes a meus irmãos e cunhados, gente matuta. Usei com abundância antigas expressões portuguesas que circulam em todo o Nordeste.
Finda a escrita, copiei-a, tentando suprimir-lhe excrescências e acessórios dispensáveis. Houve, pois, três redações: uma completamente abandonada em 1924, duas em 1932. Esforcei-me em demasia para conseguir simplicidade.
Em novembro Paulo Honório me parecia mais ou menos apresentável. Acompanhou-me à capital. Valdemar Cavalcanti datilografou-o. Gastão Cruls editou-o. E os críticos lhe dispensaram algumas cortesias.
Em Palmeira dos Índios, onde foi gerado, ninguém deu por ele. Apenas seu Digno, parente de minha mãe, vaqueiro, informado de que certo livro tinha sido feito por mim, desconfiou, duvidou. E como lhe falassem com segurança, pegou a brochura, mediu-a, pesou-a, examinou-lhe a capa, a ilustração de Santa Rosa — e opinou:
— Quem diria? Sim, senhor. Está um trabalhinho direito.
Graciliano Ramos, "Garranchos"
— Com meia dúzia de penadas, V. ganha um dinheirão, filho de Deus.
O jeito que tenho é convencer-me, decidir contar a origem de Paulo Honório, alagoano, viçosense, chegado ao Rio há doze anos e hospedado na Ariel.
Aqui vai a tarefa. Em 1924, em Palmeira dos Índios, interior de Alagoas, encontrei dificuldade séria, pus-me a ver inimigos em toda a parte e desejei suicidar-me. Realmente julgo que me suicidei. Talvez isto não seja tão idiota como parece. Abandonando o contas-correntes, o diário, outros objetos da minha profissão, havia-me embrenhado na sociologia criminal. Que me induziu a isso? Teria querido matar alguns fantasmas que me perseguiam?
Naquele inverno de 1924, numa casa triste do Pinga-Fogo, sentado à mesa da sala de jantar, fumando, bebendo café, ouvindo a arenga dos sapos, o mugido dos bois nos currais próximos e os pingos das goteiras, enchi noites de insônia e isolamento a compor uma narrativa. Surgiu um criminoso, resumo de certos proprietários rijos existentes no Nordeste. Diálogo chinfrim, sintaxe disciplinada, arrumação lastimosa. Felizmente essas folhas desapareceram. Mas as preocupações que me afligiam desapareceram também, pelo menos adelgaçaram: ressurgi, desenferrujei a alma, tornei-me prefeito municipal. Aventuro-me a admitir, pois, que o suicídio se tenha de fato realizado.
Passaram-se anos. Deixei a prefeitura, vendi a loja, mudei-me para Maceió e fui bocejar, falar ao telefone e discutir literatura na Imprensa Oficial. Em consequência da bagunça revolucionária de 30, demiti-me — e no começo de 1932 arrastava-me de novo em Palmeira dos Índios, com vários filhos pequenos, sem ofício nem esperanças, enxergando em redor nuvens e sombras.
Nessa crítica situação voltou-me ao espírito o criminoso que em 1924 me havia afastado as inquietações — um tipo vermelho, cabeludo, violento, de mãos duras, sujas de terra como raízes, habituadas a esbofetear caboclos na lavoura. As outras figuras da novela não tinham relevo, perdiam-se a distância, vagas e inconsistentes, mas o sujeito cascudo e grosseiro avultava, no alpendre da casa-grande de S. Bernardo, metido numa cadeira de vime, cachimbo na boca, olhando o prado, novilhas caracus, habitações de moradores, capulhos embranquecendo o algodoal, paus-d’arco floridos a enfeitar a mata. E, sem recorrer ao manuscrito de oito anos, pois isto prejudicaria irremediavelmente a composição, restaurei o fazendeiro cru, à lápis, na sacristia da igreja enorme que o meu velho amigo padre Macedo andava a construir. Surgiam personagens novas, e a história foi saindo diversa da primitiva.
Até o capítulo XVIII tudo correu sem transtorno. Um dia de fevereiro, ao entrar em casa, senti arrepios. À noite, com febre, fiz o capítulo XIX, uma confusão que mais tarde, quando me restabeleci, conservei.
A doença prendeu-me à cama uns três ou quatro meses. Viagem a Maceió, exames, diagnósticos equívocos, junta médica, entrada no hospital, operação, quarenta e tantos dias com um tubo de borracha a travessar-me a barriga, delírios úteis na fabricação de um romance e de alguns contos, convalescença morosa.
Ao sair do hospital, com uma perna encrencada, coxo, na ferida ainda aberta uma tampa de esparadrapo, recomecei o trabalho, que fui terminar em Palmeira dos Índios, na minha casa do Pinga-Fogo, ouvindo os sapos, a ventania, os bois de seu Sebastião Ramos. Às vezes meu pai me visitava carrancudo, largava uns monossílabos. A carranca e fragmentos de velhas narrações dele combinaram-se na edificação de Paulo Honório. Infelizmente esse colaborador morreu em 1934 e não chegou a ler o romance.
A língua, as imagens rurais, apanhei-as em consultas pacientes a meus irmãos e cunhados, gente matuta. Usei com abundância antigas expressões portuguesas que circulam em todo o Nordeste.
Finda a escrita, copiei-a, tentando suprimir-lhe excrescências e acessórios dispensáveis. Houve, pois, três redações: uma completamente abandonada em 1924, duas em 1932. Esforcei-me em demasia para conseguir simplicidade.
Em novembro Paulo Honório me parecia mais ou menos apresentável. Acompanhou-me à capital. Valdemar Cavalcanti datilografou-o. Gastão Cruls editou-o. E os críticos lhe dispensaram algumas cortesias.
Em Palmeira dos Índios, onde foi gerado, ninguém deu por ele. Apenas seu Digno, parente de minha mãe, vaqueiro, informado de que certo livro tinha sido feito por mim, desconfiou, duvidou. E como lhe falassem com segurança, pegou a brochura, mediu-a, pesou-a, examinou-lhe a capa, a ilustração de Santa Rosa — e opinou:
— Quem diria? Sim, senhor. Está um trabalhinho direito.
Graciliano Ramos, "Garranchos"
quarta-feira, julho 27
Há no ar
Há no ar uma vaga decepção. Algo muito sério parece ter dado errado. Um equívoco que se recusa a ir embora, e nos segue ao dobrar a esquina. O ar-condicionado é incapaz de filtrar, o ventilador não consegue repelir.
Feito essas massas de ar seco que impedem a chegada das chuvas, há algo no ar bloqueando a esperança. Isolados, respiramos o hálito cansado que nos mantinha vivos, mas que, agora, parece nos paralisar. Resta aguardar que um tufão, nascido de um suspiro que se supunha derrotado, retraga um mínimo de horizonte. Saberemos quando isso acontecer pelo desenferrujar das bocas.
Esse algo no ar veio de longe: antes, desanimou outras terras, enfraqueceu homens e colheitas e, em alguns cantos, causou estrago difícil de remontar. Quando aqui chegou, veio experiente, sabedor do que fazer para instalar o desalento. Se, no caminho, alguma gente o tivesse debelado, quem sabe? Mas foi o contrário: o que era ranço ficou norma; desvio virou caminho. O mundo é fraco, indefesos somos todos.
Tentamos conter a vaga com passaportes e guaritas, inútil; os foguetes enviados para dispersar deram chabu; os apelos foram ignorados, as duras consequências, confirmadas. Para piorar, a negação e ignorância dos homens, aliadas a uma impressionante petulância mostraram o caminho seguro para o inimigo.
Pois eis que há no ar um mundo subterrâneo, habitado por ignorância e sortilégios. Não aprendemos com o medo, não ficamos melhores, os que se dignaram pouco puderam fazer. Para nossa salvação, contamos com os heróis que se lançaram, correram o risco, perderam o sono, trocaram as bandagens e ainda trouxeram conforto em palavras. Mas, mesmo estes, foram tombando aos poucos.
Mas um momento: o que é isso? Está acontecendo mesmo uma risada? Da janela vejo abraços? Há gente nas calçadas? São os irresponsáveis de há pouco ou são abraços de glória? Estou sonhando com um novo ritmo, ou é efeito desse tipo de gás, que primeiro nos ilude e depois nos abate?
Sim, é verdade. O que está no ar está mesmo perdendo efeito, desistindo de permanecer, talvez já saciado com o estrago que causou. Um a um, nos recompomos e sopramos com força. Abrimos as portas de casa, espiamos o movimento das ruas – então, é verdade! Procuramos lembrar como era essa coisa de sorriso. Aos poucos, aos muitos, surge a convulsão de alegria, que derrama lágrimas de outro tipo. As janelas, abrigos e os homens se abrem, voltamos a escancarar o que se dissimulava. Uns socam o ar na comemoração, outros dançam nas praças, outros ainda se arrastam ajoelhados na grama dos parques. A comida é repartida; as dívidas, perdoadas; os inimigos proseiam sentados no chão. Sejamos melhores do que nunca fomos.
Imensa é a responsabilidade dos sobreviventes.
Cássio Zanatta
Feito essas massas de ar seco que impedem a chegada das chuvas, há algo no ar bloqueando a esperança. Isolados, respiramos o hálito cansado que nos mantinha vivos, mas que, agora, parece nos paralisar. Resta aguardar que um tufão, nascido de um suspiro que se supunha derrotado, retraga um mínimo de horizonte. Saberemos quando isso acontecer pelo desenferrujar das bocas.
Esse algo no ar veio de longe: antes, desanimou outras terras, enfraqueceu homens e colheitas e, em alguns cantos, causou estrago difícil de remontar. Quando aqui chegou, veio experiente, sabedor do que fazer para instalar o desalento. Se, no caminho, alguma gente o tivesse debelado, quem sabe? Mas foi o contrário: o que era ranço ficou norma; desvio virou caminho. O mundo é fraco, indefesos somos todos.
Tentamos conter a vaga com passaportes e guaritas, inútil; os foguetes enviados para dispersar deram chabu; os apelos foram ignorados, as duras consequências, confirmadas. Para piorar, a negação e ignorância dos homens, aliadas a uma impressionante petulância mostraram o caminho seguro para o inimigo.
Pois eis que há no ar um mundo subterrâneo, habitado por ignorância e sortilégios. Não aprendemos com o medo, não ficamos melhores, os que se dignaram pouco puderam fazer. Para nossa salvação, contamos com os heróis que se lançaram, correram o risco, perderam o sono, trocaram as bandagens e ainda trouxeram conforto em palavras. Mas, mesmo estes, foram tombando aos poucos.
Mas um momento: o que é isso? Está acontecendo mesmo uma risada? Da janela vejo abraços? Há gente nas calçadas? São os irresponsáveis de há pouco ou são abraços de glória? Estou sonhando com um novo ritmo, ou é efeito desse tipo de gás, que primeiro nos ilude e depois nos abate?
Sim, é verdade. O que está no ar está mesmo perdendo efeito, desistindo de permanecer, talvez já saciado com o estrago que causou. Um a um, nos recompomos e sopramos com força. Abrimos as portas de casa, espiamos o movimento das ruas – então, é verdade! Procuramos lembrar como era essa coisa de sorriso. Aos poucos, aos muitos, surge a convulsão de alegria, que derrama lágrimas de outro tipo. As janelas, abrigos e os homens se abrem, voltamos a escancarar o que se dissimulava. Uns socam o ar na comemoração, outros dançam nas praças, outros ainda se arrastam ajoelhados na grama dos parques. A comida é repartida; as dívidas, perdoadas; os inimigos proseiam sentados no chão. Sejamos melhores do que nunca fomos.
Imensa é a responsabilidade dos sobreviventes.
Cássio Zanatta
A gorda indiana
-"Quero ser como a flor que morre antes de velhecer”.
Assim dizia Modari, a gorda indiana. Não morreu, não envelheceu. Simplesmente, engordou ainda mais. Finda a adolescência, ela se tinha imensado, planetária. Atirada a um leito, tonelável, imobilizada, enchendo de mofo o fofo estofo. De tanto viver em sombra ela chegava de criar musgos nas entrecarnes.
A vida dela se distraía. Lhe ligavam a televisão e faziam desnovelar novelas.
Tanta substância, porém, lhe desabonava a força. A gorda não se sustinha de tanto sustento. Não tinha levante nem assento. Desempregada estava sua carne, flácido o corpo em imitação de melancia recheada. Uma simples ideia lhe fazia descair a cabeça. Já a família sabia: se era ideia bondosa descaía para o lado esquerdo. Ideia má lhe pesava no ombro direito.
Em abono da estória se diga: ela se sujava ali mesmo, em plenas carnes. À hora certa, um empregado lhe vinha lavar. Despia a moça e lhe pedia licenças para passar toalhas perfumadas pelas concavidades, folhos e pregas. Lhe pegava, virava e desfraldava com o esforço do pescador de baleia. Depois, lhe deixava assim, nua, como uma montanha capturando frescos. Por fim, lhe ajudava a vestir uma combinação leve, transparente. O empregado nem era delicado. Mas ela se amolecia com o roçar das mãos dele. E adormecia, controlo remoto na mão.
Para não definhar, longe das vividas vistas, lhe abriram uma janela no quarto. Partiram a parede, levantaram tempestades de poeira. Impossível de ser deslocada, cobriram a gorda com um plástico. Modari espirrava em soprano, mais aflita com o aparelho televisivo que com seus pulmões.
Certo um dia ali chegou um viajeiro. O migrante lhe trouxe panos, cores e perfumes da Índia. Era um homem sóbrio, sozinhoso. Ele a olhou e, de pronto, se apaixonou de tanto volume.
– “Você tem tanta mulher dentro de si que eu, para ser polígamo, nem precisava de mais nenhuma outra”.
O homem amava Modari mas tinha dificuldade em chegar a vias do facto. Com paixão ele suspirava: “se um dia eu conseguir praticar-me com você!…”. Mas ele devia atravessar mais carne que magaíça mineirando nas profundezas.
– “De hoje em diante não quero nenhum empregado mexendo em você”.
Ele mesmo passou a lavá-la. Modari se tornou muito lavadiça e o homem lhe enxugava, aplicava pós medicinais, esfregava com loções. Foi num desses lavamentos que o acto se consumou. O visitante lhe empurrou as pernas como se destroncasse imbondeiros. Fizeram amor, nem se sabe como ele conseguiu descer tão fundo nas grutas polposas dela. Modari, a seguir, se sentiu leve. Controlo remoto na mão, ela então tomou consciência que, em nenhum momento do namoro, havia largado a caixinha de comando da televisão. Assim como estava, besuntada de transpiros, fez graça:
– “Meu amor, você prefere quê: entalado ou enlatado?”
Assim dizia Modari, a gorda indiana. Não morreu, não envelheceu. Simplesmente, engordou ainda mais. Finda a adolescência, ela se tinha imensado, planetária. Atirada a um leito, tonelável, imobilizada, enchendo de mofo o fofo estofo. De tanto viver em sombra ela chegava de criar musgos nas entrecarnes.
A vida dela se distraía. Lhe ligavam a televisão e faziam desnovelar novelas.
Modari chorava, pasmava e ria com sua voz aguçada, de afinar passarinho. Nos botões do controlo remoto ela se apoderava do mundo, tudo tão fácil, bastava um toque para mudar de sonho. Rebobinar a vida, meter o tempo em pausa. Afinal, o destino está ao alcance de um dedo. Moda ri, de dia, noturna. De noite, diurna. No ecrã luminoso a moça descascava o tempo.
Tanta substância, porém, lhe desabonava a força. A gorda não se sustinha de tanto sustento. Não tinha levante nem assento. Desempregada estava sua carne, flácido o corpo em imitação de melancia recheada. Uma simples ideia lhe fazia descair a cabeça. Já a família sabia: se era ideia bondosa descaía para o lado esquerdo. Ideia má lhe pesava no ombro direito.
Em abono da estória se diga: ela se sujava ali mesmo, em plenas carnes. À hora certa, um empregado lhe vinha lavar. Despia a moça e lhe pedia licenças para passar toalhas perfumadas pelas concavidades, folhos e pregas. Lhe pegava, virava e desfraldava com o esforço do pescador de baleia. Depois, lhe deixava assim, nua, como uma montanha capturando frescos. Por fim, lhe ajudava a vestir uma combinação leve, transparente. O empregado nem era delicado. Mas ela se amolecia com o roçar das mãos dele. E adormecia, controlo remoto na mão.
Para não definhar, longe das vividas vistas, lhe abriram uma janela no quarto. Partiram a parede, levantaram tempestades de poeira. Impossível de ser deslocada, cobriram a gorda com um plástico. Modari espirrava em soprano, mais aflita com o aparelho televisivo que com seus pulmões.
Certo um dia ali chegou um viajeiro. O migrante lhe trouxe panos, cores e perfumes da Índia. Era um homem sóbrio, sozinhoso. Ele a olhou e, de pronto, se apaixonou de tanto volume.
– “Você tem tanta mulher dentro de si que eu, para ser polígamo, nem precisava de mais nenhuma outra”.
O homem amava Modari mas tinha dificuldade em chegar a vias do facto. Com paixão ele suspirava: “se um dia eu conseguir praticar-me com você!…”. Mas ele devia atravessar mais carne que magaíça mineirando nas profundezas.
– “De hoje em diante não quero nenhum empregado mexendo em você”.
Ele mesmo passou a lavá-la. Modari se tornou muito lavadiça e o homem lhe enxugava, aplicava pós medicinais, esfregava com loções. Foi num desses lavamentos que o acto se consumou. O visitante lhe empurrou as pernas como se destroncasse imbondeiros. Fizeram amor, nem se sabe como ele conseguiu descer tão fundo nas grutas polposas dela. Modari, a seguir, se sentiu leve. Controlo remoto na mão, ela então tomou consciência que, em nenhum momento do namoro, havia largado a caixinha de comando da televisão. Assim como estava, besuntada de transpiros, fez graça:
– “Meu amor, você prefere quê: entalado ou enlatado?”
Mia Couto, "Contos do nascer da Terra"
M. de memória
Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.
Paulo Leminski
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.
Paulo Leminski
terça-feira, julho 26
Não sendo aguda, é crônica
Houve uma época em que me viciei em livros de aventuras de guerra, cheguei a ler mais de cem. Quando eu era menino lia histórias em quadrinhos e, como já disse, livros de aventuras, romances policiais e de mistério. Nunca achei muita graça é em ficção científica. Os próprios policiais passei a ler com cautela, mesmo os melhores, como Dashiell Hammett e Raymond Chandler, os meus prediletos. Cada leitor tem o seu. Os meus são estes dois.
Quando o Edmund Wilson escreveu em 1944 um ensaio sobre o romance policial, sustentando, para grande escândalo dos aficionados, que mesmo os melhores eram subliteratura (a despeito do que quer que Gide tenha dito ou deixado de dizer sobre Hammett e Simenon), recebeu dezenas de cartas de protesto dos leitores: você não leu Dorothy Sayers. Ou Nero Wolf. Ou John Dickson Carr. Ou Erle Stanley Gardner. Ou quem quer que estivesse fazendo sucesso na época. Teve de voltar ao assunto e reafirmou seu julgamento. O único a quem concedeu qualidade literária foi Chandler.
São livros escritos para ser lidos – mas não mais por mim, pois tenho passatempos melhores. Simenon e Agatha Christie é que não me pegam mais.
Já os que consideram a crônica também literatura descartável certamente estão mal informados. A crônica é um gênero literário com uma tradição que vem dos quinhentistas portugueses, como Diogo do Couto, desembarca no Brasil com Pero Vaz de Caminha, passa por Machado de Assis e chega até nossos dias com Rubem Braga. Como se vê, uma linhagem das mais nobres, a que qualquer um se orgulharia de pertencer.
A confusão vem provavelmente de o termo durante algum tempo ter servido para designar em jornal as seções especializadas: a crônica política, social, esportiva – enfim, tudo o que escreviam os que hoje são mais propriamente denominados colunistas.
Entre um romance e outro, escrevi e continuo escrevendo centenas de crônicas, contos e histórias curtas. Tudo é genericamente chamado de crônica. Como se diz das doenças: não sendo aguda, é crônica...
Gosto daquela definição de Mário de Andrade: conto é tudo aquilo que o autor chama de conto. Para certas pessoas, não sendo romance, não vale. Lembro-me que um dia Guimarães Rosa me telefonou e perguntou o que eu estava fazendo. Eu disse que estava tentando escrever uma peça de teatro. E ele, meio paternal:
– Não faça biscoitos, faça pirâmides.
Fiquei algum tempo encafifado com aquilo, sem saber se a obra literária se impunha também pelo gênero e pelo tamanho, além da qualidade. Acabei concluindo que Voltaire, Machado de Assis, Jorge Luis Borges e tantos outros fizeram biscoitos. Hemingway fez tanto sucesso com seus biscoitos, como aquela admirável novela Old man and the sea (O velho e o mar), que acabou ganhando o prêmio Nobel. Ninguém é obrigado a ser Tolstói na vida, como o próprio Hemingway pensava. Nem julgado por ser biscoiteiro ou faraó.
O sucesso de uma obra literária costuma ser uma decorrência meio eventual, como o de qualquer atividade artística, muitas vezes independente da qualidade. Não posso negar que sou bastante lido – o que devo talvez ao fato de escrever numa linguagem que permite vários planos de leitura, abrangendo uma gama larga de leitores, que vai do professor ao aluno, do pai ao filho, do patrão ao empregado. Mas nem por isso me sinto realizado. No dia em que me sentir serei um homem acabado, como no livro de Papini.
Seria ridículo querer ser hoje um escritor como imaginava aos vinte anos. O mundo mudou, e eu com ele. A literatura continua, só que concebida em outros termos. Os meios de comunicação e de formulação literária evoluíram, e continuarão evoluindo sempre. Os gêneros têm fronteiras cada vez mais flexíveis e são intercomunicáveis, a ponto de escapar às classificações, apesar do esforço da crítica especializada, dissecando obras literárias como cadáveres nas salas de anatomia.
Procuro exercer o meu ofício literário fazendo com que a expressão não se subordine à comunicação, mas se harmonize com ela: que seja compatível com os meios de comunicação de nosso tempo. O difícil é atingir o perfeito equilíbrio entre uma coisa e outra. Custa muito esforço, embora não pareça.
O elogio que mais me tocou foi feito por Maria Urbana, mulher de Hélio Pellegrino, que um dia tentou contar uma pequenina história minha a uma amiga e não conseguiu. “Tive que ler a história para ela”, me disse. “Parece fácil reproduzir, mas é como um passo de dança, você vai imitar e quebra a cara.”
Escrevo antes de mais nada para mim mesmo – aquilo que eu gostaria de ler. Mas não escrevo só para mim. Nem para meus amigos, nem para meia dúzia de leitores, mas para o maior número de pessoas. Escrevo para me comunicar, e o que mais me alegra é quando essa comunicação se estabelece.
Só que poucas vezes chego a tomar conhecimento – e essa é uma das aflições de um escritor. Quanta coisa já escrevi que, mesmo tendo sido lida por muita gente, jamais saberei o efeito que causou.
Mas às vezes fico sabendo, e de maneira bem surpreendente. Soube um dia de um casal que estava se separando e na hora de dividir as coisas de casa o marido pegou um livro meu e disse que aquilo era dele, fazia questão de levar. A mulher protestou, dizendo que era seu, ela é que havia comprado. Ele se espichou na cama, começou a ler o livro e de repente desatou a rir. Ela se ofendeu: não podia admitir que, num momento tão importante da vida deles, o marido tivesse coragem de ficar rindo como um idiota. Ele pediu desculpas e leu para ela o trecho. Ela também começou a rir e em pouco os dois passaram a ler juntos na cama e acabaram na cama sem o livro. E desistiram de se separar, conforme me escreveram contando.
Reconheço que parece história inventada, como numa crônica minha.
Fernando Sabino, "Fernando Sabino na sala de aula"
Quando o Edmund Wilson escreveu em 1944 um ensaio sobre o romance policial, sustentando, para grande escândalo dos aficionados, que mesmo os melhores eram subliteratura (a despeito do que quer que Gide tenha dito ou deixado de dizer sobre Hammett e Simenon), recebeu dezenas de cartas de protesto dos leitores: você não leu Dorothy Sayers. Ou Nero Wolf. Ou John Dickson Carr. Ou Erle Stanley Gardner. Ou quem quer que estivesse fazendo sucesso na época. Teve de voltar ao assunto e reafirmou seu julgamento. O único a quem concedeu qualidade literária foi Chandler.
São livros escritos para ser lidos – mas não mais por mim, pois tenho passatempos melhores. Simenon e Agatha Christie é que não me pegam mais.
Um caso do Bertrand Russell, contado por um amigo que foi esperá-lo no aeroporto de Nova York para conduzi-lo a Boston, onde faria umas conferências, define bem esse tipo de literatura. Na estação de trem, ele comprou três livros policiais e começou a viagem. Leu o primeiro e o atirou pela janela; leu o segundo, a mesma coisa; leu o terceiro e também o jogou fora. Isso ilustra o que vem a ser literatura descartável.
Já os que consideram a crônica também literatura descartável certamente estão mal informados. A crônica é um gênero literário com uma tradição que vem dos quinhentistas portugueses, como Diogo do Couto, desembarca no Brasil com Pero Vaz de Caminha, passa por Machado de Assis e chega até nossos dias com Rubem Braga. Como se vê, uma linhagem das mais nobres, a que qualquer um se orgulharia de pertencer.
A confusão vem provavelmente de o termo durante algum tempo ter servido para designar em jornal as seções especializadas: a crônica política, social, esportiva – enfim, tudo o que escreviam os que hoje são mais propriamente denominados colunistas.
Entre um romance e outro, escrevi e continuo escrevendo centenas de crônicas, contos e histórias curtas. Tudo é genericamente chamado de crônica. Como se diz das doenças: não sendo aguda, é crônica...
Gosto daquela definição de Mário de Andrade: conto é tudo aquilo que o autor chama de conto. Para certas pessoas, não sendo romance, não vale. Lembro-me que um dia Guimarães Rosa me telefonou e perguntou o que eu estava fazendo. Eu disse que estava tentando escrever uma peça de teatro. E ele, meio paternal:
– Não faça biscoitos, faça pirâmides.
Fiquei algum tempo encafifado com aquilo, sem saber se a obra literária se impunha também pelo gênero e pelo tamanho, além da qualidade. Acabei concluindo que Voltaire, Machado de Assis, Jorge Luis Borges e tantos outros fizeram biscoitos. Hemingway fez tanto sucesso com seus biscoitos, como aquela admirável novela Old man and the sea (O velho e o mar), que acabou ganhando o prêmio Nobel. Ninguém é obrigado a ser Tolstói na vida, como o próprio Hemingway pensava. Nem julgado por ser biscoiteiro ou faraó.
O sucesso de uma obra literária costuma ser uma decorrência meio eventual, como o de qualquer atividade artística, muitas vezes independente da qualidade. Não posso negar que sou bastante lido – o que devo talvez ao fato de escrever numa linguagem que permite vários planos de leitura, abrangendo uma gama larga de leitores, que vai do professor ao aluno, do pai ao filho, do patrão ao empregado. Mas nem por isso me sinto realizado. No dia em que me sentir serei um homem acabado, como no livro de Papini.
Seria ridículo querer ser hoje um escritor como imaginava aos vinte anos. O mundo mudou, e eu com ele. A literatura continua, só que concebida em outros termos. Os meios de comunicação e de formulação literária evoluíram, e continuarão evoluindo sempre. Os gêneros têm fronteiras cada vez mais flexíveis e são intercomunicáveis, a ponto de escapar às classificações, apesar do esforço da crítica especializada, dissecando obras literárias como cadáveres nas salas de anatomia.
Procuro exercer o meu ofício literário fazendo com que a expressão não se subordine à comunicação, mas se harmonize com ela: que seja compatível com os meios de comunicação de nosso tempo. O difícil é atingir o perfeito equilíbrio entre uma coisa e outra. Custa muito esforço, embora não pareça.
O elogio que mais me tocou foi feito por Maria Urbana, mulher de Hélio Pellegrino, que um dia tentou contar uma pequenina história minha a uma amiga e não conseguiu. “Tive que ler a história para ela”, me disse. “Parece fácil reproduzir, mas é como um passo de dança, você vai imitar e quebra a cara.”
Escrevo antes de mais nada para mim mesmo – aquilo que eu gostaria de ler. Mas não escrevo só para mim. Nem para meus amigos, nem para meia dúzia de leitores, mas para o maior número de pessoas. Escrevo para me comunicar, e o que mais me alegra é quando essa comunicação se estabelece.
Só que poucas vezes chego a tomar conhecimento – e essa é uma das aflições de um escritor. Quanta coisa já escrevi que, mesmo tendo sido lida por muita gente, jamais saberei o efeito que causou.
Mas às vezes fico sabendo, e de maneira bem surpreendente. Soube um dia de um casal que estava se separando e na hora de dividir as coisas de casa o marido pegou um livro meu e disse que aquilo era dele, fazia questão de levar. A mulher protestou, dizendo que era seu, ela é que havia comprado. Ele se espichou na cama, começou a ler o livro e de repente desatou a rir. Ela se ofendeu: não podia admitir que, num momento tão importante da vida deles, o marido tivesse coragem de ficar rindo como um idiota. Ele pediu desculpas e leu para ela o trecho. Ela também começou a rir e em pouco os dois passaram a ler juntos na cama e acabaram na cama sem o livro. E desistiram de se separar, conforme me escreveram contando.
Reconheço que parece história inventada, como numa crônica minha.
Fernando Sabino, "Fernando Sabino na sala de aula"
segunda-feira, julho 25
O amor e suas palavras
As palavras do amor eram pura melodia. Elas nos embriagavam, nos inebriavam, nos enfeitiçavam tão completamente que nos censurávamos sempre, por nos julgarmos indignos de ouvi-las. Quando descobriu nossa pequenez, ele se foi e levou suas palavras a ouvidos que nosso despeito e nossa maldade diariamente amaldiçoam.
Chego à idade da razão sem método, sem mérito e sem empolgação.
Dourada foi a época em que os artistas do mundo todo passavam ao menos um ano em Paris. No regresso traziam sempre alguma novidade, mesmo que fosse um bigode ou um cavanhaque.
Se o assunto for alegria, não me chamem. Se for tristeza, vou e tomo partido.
Embora até possam dizer que não, os leitores, apesar de todos os modernismos, ainda esperam que os poetas, falem do que falarem, falem principalmente de amor.
A tristeza não tem fim, só recomeços.
O que tínhamos fomos dando ao amor. Depois que se apossou de tudo, nunca mais vimos seu rosto de anjo e seus olhos pedinchões.
Todos sabiam de que venturoso mal padecíamos no tempo em que nos subjugava o amor. Nossos olhos encovados e nosso agradecido rosto de mártir nos denunciavam.
Seria inadequado eu dizer que a poesia me deve alguma coisa. Pode alguém considerar sério um pacto que um velho bisonho, na época ainda com vinte anos incompletos, diz ter firmado com uma senhora brilhante e respeitabilíssima?
Habituado a lidar com as flores, os passarinhos e as mulheres, o desiludido poeta romântico hoje convertido às causas sociais procura rimas para povo, cidadãos, liberdade e luta e a cada poema que faz imagina que com ele se deflagrará uma revolução.
Raul Drewnick
***
Chego à idade da razão sem método, sem mérito e sem empolgação.
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Dourada foi a época em que os artistas do mundo todo passavam ao menos um ano em Paris. No regresso traziam sempre alguma novidade, mesmo que fosse um bigode ou um cavanhaque.
***
Morramos nós do que for, se for preciso mintamos e ao mundo todo digamos que morremos de amor.
***
Se o assunto for alegria, não me chamem. Se for tristeza, vou e tomo partido.
***
Embora até possam dizer que não, os leitores, apesar de todos os modernismos, ainda esperam que os poetas, falem do que falarem, falem principalmente de amor.
***
A tristeza não tem fim, só recomeços.
***
O que tínhamos fomos dando ao amor. Depois que se apossou de tudo, nunca mais vimos seu rosto de anjo e seus olhos pedinchões.
***
Todos sabiam de que venturoso mal padecíamos no tempo em que nos subjugava o amor. Nossos olhos encovados e nosso agradecido rosto de mártir nos denunciavam.
***
Seria inadequado eu dizer que a poesia me deve alguma coisa. Pode alguém considerar sério um pacto que um velho bisonho, na época ainda com vinte anos incompletos, diz ter firmado com uma senhora brilhante e respeitabilíssima?
***
Habituado a lidar com as flores, os passarinhos e as mulheres, o desiludido poeta romântico hoje convertido às causas sociais procura rimas para povo, cidadãos, liberdade e luta e a cada poema que faz imagina que com ele se deflagrará uma revolução.
Raul Drewnick
Não se pode existir sem ler
Só aprendi a escrever muito tempo depois, aos sete anos de idade. Talvez pudesse viver sem escrever, mas não creio que pudesse viver sem ler. Ler - descobri - vem antes de escrever. Uma sociedade pode existir - existem muitas, de fato - sem escrever, mas nenhuma sociedade pode existir sem ler. De acordo com o etnólogo Philippe Descola, as sociedades sem escrita têm sentido linear do tempo, enquanto nas sociedades ditas letradas o sentido do tempo é cumulativo; ambas sociedades movem-se dentro desses tempos diferentes mas igualmente complexos, lendo uma infinidade de sinais que o mundo tem a oferecer. Mesmo em sociedades que deixaram registros de sua passagem, a leitura precede a escrita; o futuro escritor deve ser capaz de reconhecer e decifrar o sistema social de signos antes de colocá-los no papel. Para a maioria das sociedades letradas - para o Islã, para sociedades judaicas e cristãs como a minha, para os antigos maias, para as vastas culturas budistas -, ler está no princípio do contrato social; aprender a ler foi meu rito de passagem.
Depois que aprendi a ler minhas letras, li de tudo: livros, mas também notícias, anúncios, os tipos de pequenos no verso da passagem do bonde, letras jogadas no lixo, jornais velhos apanhados sob o banco do parque, grafites, a contracapa das revistas de outros passageiros no ônibus. Quando fiquei sabendo que Cervantes, em seu apego à leitura, lia até os pedaços de papel rasgado na rua, entendi exatamente que impulso o levava a isso.
Alberto Manguel, "História da leitura"
Depois que aprendi a ler minhas letras, li de tudo: livros, mas também notícias, anúncios, os tipos de pequenos no verso da passagem do bonde, letras jogadas no lixo, jornais velhos apanhados sob o banco do parque, grafites, a contracapa das revistas de outros passageiros no ônibus. Quando fiquei sabendo que Cervantes, em seu apego à leitura, lia até os pedaços de papel rasgado na rua, entendi exatamente que impulso o levava a isso.
Alberto Manguel, "História da leitura"
domingo, julho 24
Carta ao meu cão
Sei que não sabes ler. Sei que não conheces as letras. Mas sei que sabes tudo sem elas. Por isso te escrevo para te dizer aquilo que não lês. Que te espero incessantemente nesta casa que é tua. Tudo está tão só sem ti. Aqueles latidos que nos dirigias , quando chegávamos sem te ter levado connosco, como lhes sinto a falta. Detestavas ficar em casa sozinho. E nem sempre era possível levar-te. Tu sabia-lo , mas também sabias que estarmos juntos era muito melhor. Somos uma família. E és um elemento importante que de todos necessita. São os mimos que recebes e que retribuis com essa mansa solicitude que nos enche o coração. Estás para todos em constante bonomia.
Tudo aqui reflecte a tua ausência. Não há um único espaço da casa que não fale de ti. De tudo sabes, de tudo relatas, de tudo te ocupas. Nunca deixaste de guardar este nosso território. É o nosso lar. E como o conheces bem.
E agora, meu amigo, como estar aqui sem ti?! Há tantos dias que estás a lutar pela vida, nessa casa com tantos tubos na pele. Não é esse o teu espaço. Todos nós o sabemos. Ver-te assim é uma dor que magoa. E magoa mais ainda ter de te deixar aí , sem nós, para regressar aqui , sem ti.
Que Deus te ajude, meu querido Ziggy. Esperamos por ti.Eugénio Lisboa
Nem sei se sabes quanto me delicias, quando te aninhas aos meus pés, sempre que me sento para escrever . O tempo tem outra dimensão. E a leveza do teu respirar dá às palavras a fluidez certa. E, sem ti , tudo se torna pesado. As palavras engasgam-se para se soltarem em redondo movimento, quase estranha e errática litania.
Tudo aqui reflecte a tua ausência. Não há um único espaço da casa que não fale de ti. De tudo sabes, de tudo relatas, de tudo te ocupas. Nunca deixaste de guardar este nosso território. É o nosso lar. E como o conheces bem.
E agora, meu amigo, como estar aqui sem ti?! Há tantos dias que estás a lutar pela vida, nessa casa com tantos tubos na pele. Não é esse o teu espaço. Todos nós o sabemos. Ver-te assim é uma dor que magoa. E magoa mais ainda ter de te deixar aí , sem nós, para regressar aqui , sem ti.
Que Deus te ajude, meu querido Ziggy. Esperamos por ti.
Fogos cruzados
“Um dia nós seremos atacados?”, foi o que minha filha perguntou outro dia, porque o assunto ambiente devia estar rondando alguma das cotidianas tragédias de uma população armada. E como é que às vezes desatamos a comentar barbaridades como se uma criança, por ter seu halo de mundo próprio, não nos ouvisse nem levasse para dentro o que dizemos? Está certo que não é para já destampar o poço do hediondo nem interessa ensaiar em casa as bofetadas do mundo, mas a prática de pequenos assombros talvez não seja de todo desaconselhável, uma vez que sempre há aqueles inopinados, inevitáveis, que não poupam nem aos menores de idade. Por exemplo, de tanto ter visto gente morando ou andarilhando na rua, minha filha merece saber que muitos desses que hoje vagam por aí já tiveram casa, família, talvez até outro nome, e que qualquer um, minha filha, qualquer um pode parar na rua, um dia. E antes que o ar fique muito grave ou o chão excessivamente frágil, cai na roda outro assunto, não menos real nem tão longínquo para uma criança quanto parece ser para nós, também notícia desses dias, aquele incêndio esplendoroso no céu pelo telescópio James Webb, todo aquele espetáculo, enquanto aqui embaixo a gente se engalfinha, luzes que nem parecem velhas, tão resplandecentes que parecem fogo fresco, para acabar de uma vez só com todas as nossas armas e praxes de truculência. Mas, afinal, chega de fogo. Me conte você, minha filha, como era mesmo aquela história que você inventou, também outro dia? Era uma vez um menino que vivia num mundo onde tudo e todos faziam sentido, só ele não.
Mariana Ianelli
Mariana Ianelli
A tempestade é você
Nick Botting |
(...) E não há maneira de escapar à violência da tempestade, a essa tempestade metafísica, simbólica. Não te iludas: por mais metafísica e simbólica que seja, rasgar-te-á a carne como mil navalhas de barba. O sangue de muita gente correrá, e o teu juntamente com ele. Um sangue vermelho, quente. Ficarás com as mãos cheias de sangue, do teu sangue e do sangue dos outros.
E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. Mas uma coisa é certa. Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. Só assim as tempestades fazem sentido.
Haruki Murakami, "Kafka à beira-mar"
sexta-feira, julho 22
Os poderes da Literatura
Há livros escritos para evitar espaços vazios nas estantesCarlos Drummond de Andrade
A literatura tem grandes poderes e grandes fastios. Não vou enumerar aqui todos os seus poderes nem todos os seus fastios. Estaríamos aqui até chegarem aí os chineses.
Um dos seus mais admiráveis, estimáveis e quase nunca alardeados poderes é o de, mais do que tornar o leitor um admirador do escritor, ser capaz de fazer dele um amigo. Há escritores de quem ficamos gratos amigos, depois de os lermos, mesmo sem os termos pessoalmente conhecido, mesmo não tendo vivido no mesmo século que eles. Para dar só alguns exemplos, repito: só alguns exemplos, Camões, o Padre António Vieira, Garrett, Camilo, Eça, Pessoa, Régio (há meninos que, para efeito curricular académico, gostam de definir a presença, suprimindo Régio e dando como suas balizas Nemésio e Torga, o que, além de ser estúpida afronta, é, eruditamente falando, um ciclópico disparate, porque Nemésio e Torga pouco tiveram que ver com a presença. Mas, ocultar Régio afaga o ego de certos docentes que, fazendo também versos, desconhecem a mais elementar arte poética, e os candidatos a docentes sabem bem para que lado o vento sopra), Domingos Monteiro, Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena, Sophia (a sua poesia, não ela), Montaigne, Voltaire, Vauvenargues, Stendhal, Baudelaire, Gide, Roger Martin du Gard, Edgar Poe, Mark Twain, Dickens, Charlotte Brontë, Tolstoi, Tcheckov, Turguenev e outros. Repito que falo de amizades e não de admirações: há escritores que admiramos mas que não consideramos necessariamente nossos amigos. Seja como for, quer haja só admiração, quer haja também amizade, a literatura ajuda-nos a viver, protege-nos e torna-nos a vida viável, mais rica e aprazível.
Dizia o ficcionista americano Charles Bukowski que, sem a literatura, a vida seria um inferno. Isto é bem verdade, mas a literatura que impede que a nossa vida se torne num inferno é só uma certa literatura. Há, julgo eu, mais duas espécies de literatura: aquela que nos deixa completamente indiferentes e que, quando a lemos, não altera nada dentro de nós, e aquela que torna a nossa vida num inferno. A primeira, a que nos deixa exactamente como éramos antes de a lermos, é aquela que Carlos Drummond de Andrade dizia só servir “para evitar espaços vazios na estante”. É uma literatura constituída por livros que não nos incomodam, mas também nos não exaltam, que não nos arreliam mas também não nos modificam. Digamos que são livros neutros, assexuados, desnecessários, mas não necessariamente malignos.
Porém, há outra categoria de literatura, a dos livros que fazem da nossa vida um inferno, que nos fazem mau sangue e nos produzem enxaquecas intratáveis. Livros que interferem com o normal funcionamento do nosso organismo e com a nossa saúde mental. Infelizmente, a nossa literatura portuguesa contemporânea, com a bênção de tantas das nossas vestais universitárias & outras, abunda nesta espécie de literatura infernal. Ainda há pouco, tive ocasião de identificar uma dessas espécies – para o caso, um romance – cujo contacto me abalou a saúde para sempre. Para estes malfeitores devia congeminar-se legislação adequada. Que diabo, um crime é um crime!
A única vantagem destes livros sulfurosos é esta: se duas pessoas que se encontram pela primeira vez verificam que ambos acham infernal um mesmo livro, há grande probabilidade de essas duas pessoas se tornarem grandes amigas para o resto dos seus dias. Inversamente, como observava o maravilhoso P. G. Wodehouse, “não há base mais segura para uma bonita amizade do que um gosto mútuo na literatura.” Por outras palavras, o inferno une mas o céu também.
Seja como for, a literatura tem admiráveis poderes: abre-nos mundos novos, é, como dizia Kafka, “uma expedição em direcção à verdade”, consola-nos, desafia-nos, provoca-nos, ensina-nos, obriga-nos a desaprendermos conceitos falsos mas muito enraizados, ilumina as dificuldades com que, na vida, deparamos, e enriquece-nos das maneiras mais diversas.
Talvez possamos resumir os poderes benévolos da literatura, por estas palavras singelas e sábias do filósofo, linguista e ensaísta literário búlgaro, radicado em Paris, Tzvetan Todorov: “Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é porque ela me ajuda a viver”.
quinta-feira, julho 21
A destruição do conhecimento
Com o avanço de nossa tecnologia, conseguimos vislumbrar o futuro e o espaço sideral com um olhar diferente do que tinham os cientistas e pensadores do início do século XX. Do mesmo modo, hoje podemos analisar o passado com maior percepção e conhecimento tecnológico, pois assim como pudemos imaginar um futuro diferente daquele que nossos avós conseguiram idealizar, nós também podemos olhar o passado de forma distinta daquela imaginada pelos cientistas e especialistas de um século atrás.
Assim como nosso escopo do universo foi forçado a recuar até os mais distantes pontos do espaço, temos hoje condição de recuar até os pontos mais remotos da história. E muitos pesquisadores estão fazendo exatamente isso.
A Atlântida, com sua cultura avançada, é mencionada em textos antigos. Para começar, é citada nos Diálogos de Platão (extraídos, segundo o texto, de antigos registros egípcios), e quase todas as antigas culturas do planeta têm mitos e lendas sobre um mundo anterior e sobre o cataclismo que o destruiu. Maias, astecas e hopis acreditavam na destruição de quatro mundos (ou mais) antes do nosso. Pode ser que a destruição da Atlântida não seja sequer o mais recente cataclismo a afligir a Terra.
Os livros mais conhecidos do mundo, como a Bíblia, o Mahabharata, o Corão e até o Tao Te Ching mencionam cataclismos e antigas civilizações destruídas. Antigas civilizações e histórias a respeito delas preencheram milhares, até centenas de milhares de volumes de livros que eram guardados em bibliotecas espalhadas pelo mundo na Antiguidade. Muitas das bibliotecas antigas eram tão vastas que ficaram famosas entre os historiadores locais. A Biblioteca de Alexandria é um exemplo conhecido.
Todos os textos chineses antigos foram destruídos em 212 a.C. por ordem do imperador Chin Shih Huang Ti, construtor da famosa Muralha da China. Enormes lotes de textos antigos - praticamente tudo que dizia respeito à história, à filosofia e à ciência - foram apreendidos e queimados. Bibliotecas inteiras foram destruídas, inclusive a biblioteca real, e algumas das obras de Confúcio e de Mêncio também desapareceram nessa devastação do conhecimento. Felizmente, alguns livros sobreviveram porque algumas pessoas os ocultaram em cavernas subterrâneas, e muitas obras foram escondidas em templos taoístas, onde até hoje são religiosamente mantidas e preservadas.
Os conquistadores espanhóis destruíram todos os códices maias que encontraram. Dos muitos milhares de livros encontrados, tem-se conhecimento de apenas três ou quatro ainda existentes. Tal como as seitas cristãs fanáticas do século III e o imperador Chin Shih Huang Ti no século III a.C., os conquistadores espanhóis quiseram apagar todo e qualquer conhecimento do passado e os registros que o preservavam.
A Europa e o Mediterrâneo mergulharam na infame Idade das Trevas, quando a igreja cristã sofreu seu primeiro Cisma após uma série de concílios, a começar pelo de Nicéia, em 325. O último patriarca da igreja cristã primitiva, Nestório, foi deposto pelo Concílio de Éfeso em 431, sendo banido para a Líbia e provocando o deslocamento da igreja nestoriana para o Oriente. O conflito dizia respeito à antiga doutrina cristã da reencarnação, e à ideia de que Cristo teria natureza dupla: Jesus seria um Mestre, enquanto Cristo seria o arcanjo Melquisedeque.
Assim como nosso escopo do universo foi forçado a recuar até os mais distantes pontos do espaço, temos hoje condição de recuar até os pontos mais remotos da história. E muitos pesquisadores estão fazendo exatamente isso.
A Atlântida, com sua cultura avançada, é mencionada em textos antigos. Para começar, é citada nos Diálogos de Platão (extraídos, segundo o texto, de antigos registros egípcios), e quase todas as antigas culturas do planeta têm mitos e lendas sobre um mundo anterior e sobre o cataclismo que o destruiu. Maias, astecas e hopis acreditavam na destruição de quatro mundos (ou mais) antes do nosso. Pode ser que a destruição da Atlântida não seja sequer o mais recente cataclismo a afligir a Terra.
Os livros mais conhecidos do mundo, como a Bíblia, o Mahabharata, o Corão e até o Tao Te Ching mencionam cataclismos e antigas civilizações destruídas. Antigas civilizações e histórias a respeito delas preencheram milhares, até centenas de milhares de volumes de livros que eram guardados em bibliotecas espalhadas pelo mundo na Antiguidade. Muitas das bibliotecas antigas eram tão vastas que ficaram famosas entre os historiadores locais. A Biblioteca de Alexandria é um exemplo conhecido.
Infelizmente, é fato que, ao longo da história, bibliotecas e arquivos imensos foram deliberadamente destruídos. Segundo o famoso astrônomo Carl Sagan, existiu um livro intitulado A verdadeira história da humanidade nos últimos 100 mil anos, e encontrava-se no acervo de Alexandria. Infelizmente, este livro, como milhares de outros, foi queimado por cristãos fanáticos no século III. Os exemplares que se salvaram foram queimados alguns séculos depois pelos muçulmanos para aquecer a água do banho.
Todos os textos chineses antigos foram destruídos em 212 a.C. por ordem do imperador Chin Shih Huang Ti, construtor da famosa Muralha da China. Enormes lotes de textos antigos - praticamente tudo que dizia respeito à história, à filosofia e à ciência - foram apreendidos e queimados. Bibliotecas inteiras foram destruídas, inclusive a biblioteca real, e algumas das obras de Confúcio e de Mêncio também desapareceram nessa devastação do conhecimento. Felizmente, alguns livros sobreviveram porque algumas pessoas os ocultaram em cavernas subterrâneas, e muitas obras foram escondidas em templos taoístas, onde até hoje são religiosamente mantidas e preservadas.
Os conquistadores espanhóis destruíram todos os códices maias que encontraram. Dos muitos milhares de livros encontrados, tem-se conhecimento de apenas três ou quatro ainda existentes. Tal como as seitas cristãs fanáticas do século III e o imperador Chin Shih Huang Ti no século III a.C., os conquistadores espanhóis quiseram apagar todo e qualquer conhecimento do passado e os registros que o preservavam.
A Europa e o Mediterrâneo mergulharam na infame Idade das Trevas, quando a igreja cristã sofreu seu primeiro Cisma após uma série de concílios, a começar pelo de Nicéia, em 325. O último patriarca da igreja cristã primitiva, Nestório, foi deposto pelo Concílio de Éfeso em 431, sendo banido para a Líbia e provocando o deslocamento da igreja nestoriana para o Oriente. O conflito dizia respeito à antiga doutrina cristã da reencarnação, e à ideia de que Cristo teria natureza dupla: Jesus seria um Mestre, enquanto Cristo seria o arcanjo Melquisedeque.
No ímpeto desse conflito, todos os livros do império bizantino foram destruídos, exceto a nova versão da Bíblia, autorizada pela Igreja Católica. A Biblioteca de Alexandria foi destruída nessa época, quando a grande matemática e filósofa Hypatia foi arrastada de sua carruagem e dilacerada por uma multidão, que depois se dirigiu à biblioteca e incendiou-a. Assim teve início a supressão da ciência e do conhecimento, particularmente de nosso passado mais remoto. O conhecimento tem sido suprimido ao longo dos últimos dois mil anos. Às vezes, diz-se que a história é escrita pelos vencedores das guerras, e não pelos perdedores; e tendo em vista a quantidade de propaganda política reconhecidamente bélica que ainda é tida como “história” popular no século XX, deveríamos realmente examinar boa parte da história antiga sob esse prisma. Sabendo dessa supressão, é espantoso que os poucos textos antigos que sobreviveram abordem, com efeito, civilizações avançadas e os cataclismos que as destruíram. Do mesmo modo, falam de sábios que viviam em harmonia com a Terra e com o funcionamento natural de todas as coisas. Em algum momento do passado remoto, porém, o homem perdeu a harmonia com a natureza, e uma catástrofe atingiu todo o planeta.
Vemos aqui um notável paralelo entre o antigo “mito” da Atlântida e a situação em que o homem moderno se encontra hoje. Será que o homem moderno irá sobreviver à sua própria tecnologia e tribalismo? Ou será que irá se destruir nos mecanismos naturais de suas práticas nocivas e em desarmonia com a Terra?
David Hatcher Childress, "A incrível tecnologia dos antigos"
David Hatcher Childress, "A incrível tecnologia dos antigos"
História de Kessi
Henry van de Velde |
As feras se haviam escondido e ele vagou durante três meses.
Exausto, dormiu ao pé de uma árvore. Ali habitavam os duendes do bosque, e eles decidiram devorar o jovem. Mas esta era também a terra onde viviam os espíritos dos mortos, e o pai de Kessi imaginou um estratagema. “Gnomos! Por que vão matá-lo? Roubem sua capa para que sinta frio e se vá”. Os gnomos são gatunos e Kessi acordou com o vento que lhe assoviava nos ouvidos e lhe flagelava as costas. Dirigiu-se encosta abaixo, até uma luz que bruxoleava solitária no meio do vale.
Teve sete sonhos: Viu-se diante de uma enorme porta, que em vão tentou abrir. Viu-se nos fundos de uma casa onde trabalhavam as criadas, e uma enorme ave arrebatou uma delas. Viu-se em uma vasta pradaria que um grupo de homens percorria placidamente; brilhou um relâmpago, e um raio caiu sobre eles. Mudou a cena, e os antepassados de Kessi estavam reunidos em redor do fogo, e o avivavam. Viu-se com as mãos atadas e os pés presos com correntes, como colares de mulher.
Estava pronto para sair a caçar, e viu de um lado da porta um dragão, e do outro horrendas harpias.
Contou à sua mãe o ocorrido. A mãe o animou (“O junco se inclina sob a chuva e o vento, porém torna a erguer-se”) e lhe entregou uma meada de lã azul, cor que protege de feitiços e danos.
Kessi partiu em direção da montanha.
Os deuses continuavam ofendidos: não havia feras para caçar.
Kessi vagou sem rumo até cansar-se. Achou-se em frente a uma grande porta que era guardada por um dragão e horrendas harpias. Não conseguiu abrir a porta, ninguém respondeu aos seus chamados e decidiu esperar. O sono apoderou-se dele. Quando despertou, anoitecia e ele viu uma luz intermitente que se aproximava, se agigantava e terminou por cegá-lo: dela surgiu um homem alto e luminoso. Disse que aquela era a porta do ocaso, e que por trás dela se achava o reino dos mortos. O mortal que a transpusesse não poderia voltar. “Como podes tu, então, passar por ela?” “Eu sou o sol”, respondeu o deus, e entrou.
Do outro lado, os espíritos dos mortos esperavam para dar as boas vindas ao deus sol em sua visita noturna. Encontrava-se aí Udipsharri, pai de Shintalimeni. Ao ouvir a voz de seu genro, regozijou-se de que fosse ele o primeiro mortal a vir visitar os mortos. Suplicou ao sol que permitisse sua entrada.
— Muito bem, que passe a porta e me siga pelo caminho escuro; não regressará ao reino dos vivos. Atem suas mãos e seus pés para que não possa escapar.
Quando tenha visto tudo, eu o matarei.
Kessi encontrou-se diante de um túnel comprido e estreito. O deus sol se distanciava e se reduzia a um ponto. Udipsharri atou as mãos e os pés de Kessi e convidou-o a seguir a luz mortiça. Kessi viu os espíritos dos mortos, que avivavam o fogo: eram os ferreiros do deus, que forjam os raios que ele arroja à terra.
Sentiu que milhares de pássaros revoavam em torno. “Estas, disse Udipsharri, são as aves da morte, que levam ao mundo subterrâneo as almas dos mortos”. Kessi reconheceu a ave gigantesca de seus sonhos. Finalmente chegaram à porta do amanhecer. Kessi devia morrer, porém pediu perdão. O deus sol lembrou como Kessi se levantava na alvorada, caçava e fazia oferendas aos deuses. “Bem, determinou, irás junto com tua esposa e suas seis irmãs ao céu, de onde juntos contemplarão as estrelas eternas”.
Nas noites claras se vê, nas pradarias do céu, o Caçador, que tem as mãos atadas e os pés ligados com cadeias como colares de mulher. Junto do caçador resplandecem sete estrelas.
Conto hitita do segundo milênio a.C.
Jorge Luis Borges, "Livro de Sonhos"Dias perfeitos
Dias perfeitos são esses em que Meteorologia afirma, vai chover e chove mesmo: não os outros, quando se anda de capa e guarda-chuva para cá e para lá, até se perder um dos dois ou os dois juntos.
Dias perfeitos são esses em que todos os relógios amanhecem certos: o do pulso, o da cozinha, o da igreja, o da Glória, o da Carioca, excetuando-se apenas os das relojoarias, pois a graça, destes, é marcarem todos horas diferentes.
Dias perfeitos são esses em que os pneus não amanhecem vazios: as ruas acordam com dois ou três buracos consertados, pelo menos; o ônibus não vem em cima de nós, buzinando e na contramão; e os sinais de cruzamento não estão enguiçados e os guardas estão no seu posto, sem conversa para as morenas nem para os colegas.
Dias perfeitos são esses em que não cai botão nenhum da nossa roupa ou, se cair, uma pessoa amável aparecerá correndo, gastando o coração, para no-lo oferecer como quem oferece uma rosa, deplorando não dispor de linha e agulha para voltar a pô-lo no lugar.
Dias perfeitos são esses em que o motorista do carro de trás não buzina como um doido, os da direita e da esquerda não dançam quadrilha na nossa frente, e os velhotes não leem jornal no meio da rua, e as mocinhas que carregam à cabeça seus tabuleiros de penteados não resolvem atravessar, com suas perninhas trepadas em metro e meio de saltos, justamente por lugares por onde nem a bola de futebol doméstico se arrisca.
Dias perfeitos são esses em que se vai ao teatro, como mandam os amigos, e os atores sabem o que estão fazendo, e a vizinha de trás não conversa do prólogo ao epílogo sobre assuntos particulares, e a menina da frente não chupa, não mastiga e não assovia caramelos e o cavalheiro da esquerda não pega no sono, resvalando insensivelmente para cima de nós o seu mavioso ronco.
Dias perfeitos, esses em que voltamos para a casa e a encontramos intacta, no mesmo lugar, e intactos estão os nossos tristes ossos, e podemos dormir em paz, tranquilos e felizes como se voltássemos apenas de um passeio pelos anéis de Saturno.
Cecília Meireles, "Crônicas para jovens"
Dias perfeitos são esses em que todos os relógios amanhecem certos: o do pulso, o da cozinha, o da igreja, o da Glória, o da Carioca, excetuando-se apenas os das relojoarias, pois a graça, destes, é marcarem todos horas diferentes.
Dias perfeitos são esses em que os pneus não amanhecem vazios: as ruas acordam com dois ou três buracos consertados, pelo menos; o ônibus não vem em cima de nós, buzinando e na contramão; e os sinais de cruzamento não estão enguiçados e os guardas estão no seu posto, sem conversa para as morenas nem para os colegas.
Dias perfeitos são esses em que não cai botão nenhum da nossa roupa ou, se cair, uma pessoa amável aparecerá correndo, gastando o coração, para no-lo oferecer como quem oferece uma rosa, deplorando não dispor de linha e agulha para voltar a pô-lo no lugar.
Dias perfeitos são esses em que ninguém pisa nos nossos sapatos, nem esbarra com uma cesta nas nossas meias, ou, se isso acontecer, pede milhões de desculpas, hábito que se vai perdendo com uma velocidade supervostokiana.
Dias perfeitos são esses em que os guichês do Correio dispõem de gentis senhoritas e respeitáveis senhores que não estão fazendo crochê nem jogando xadrez sozinhos e não se aborrecem com o mísero pretendente à expedição de uma carta aérea, e até sabem quanto pesa a missiva e qual o seu destino, no mapa, e têm troco certo na gaveta, e não atiram os selos pelo ar como quem solta pombos da cartola. (Ah, esses são dias perfeitíssimos! ...)
Dias perfeitos são esses em que os guichês do Correio dispõem de gentis senhoritas e respeitáveis senhores que não estão fazendo crochê nem jogando xadrez sozinhos e não se aborrecem com o mísero pretendente à expedição de uma carta aérea, e até sabem quanto pesa a missiva e qual o seu destino, no mapa, e têm troco certo na gaveta, e não atiram os selos pelo ar como quem solta pombos da cartola. (Ah, esses são dias perfeitíssimos! ...)
Dias perfeitos são esses em que o motorista do carro de trás não buzina como um doido, os da direita e da esquerda não dançam quadrilha na nossa frente, e os velhotes não leem jornal no meio da rua, e as mocinhas que carregam à cabeça seus tabuleiros de penteados não resolvem atravessar, com suas perninhas trepadas em metro e meio de saltos, justamente por lugares por onde nem a bola de futebol doméstico se arrisca.
Dias perfeitos são esses em que se vai ao teatro, como mandam os amigos, e os atores sabem o que estão fazendo, e a vizinha de trás não conversa do prólogo ao epílogo sobre assuntos particulares, e a menina da frente não chupa, não mastiga e não assovia caramelos e o cavalheiro da esquerda não pega no sono, resvalando insensivelmente para cima de nós o seu mavioso ronco.
Dias perfeitos, esses em que voltamos para a casa e a encontramos intacta, no mesmo lugar, e intactos estão os nossos tristes ossos, e podemos dormir em paz, tranquilos e felizes como se voltássemos apenas de um passeio pelos anéis de Saturno.
Cecília Meireles, "Crônicas para jovens"
terça-feira, julho 19
Reler e reler
Há poucos exercícios tão interessantes e introspectivos como reler um livro que nos marcou há 10 ou 20 anos. O livro é o mesmo, mas nós somos outros e vamo-nos apercebendo da diferença com susto e espanto. Há tanto que não sabíamos e passámos a saber e há outro tanto que já esquecemos. Há coisas que achámos geniais e que agora parecem banais e outras a que não ligámos e a que agora damos relevância. O texto é o mesmo, mas nós mudámos e o mundo mudou também. "Não nos podemos banhar duas vezes nas mesmas águas", dizia Heráclito, e também não podemos ler duas vezes o mesmo livroNuno Camarneiro
O macaco que quis ser escritor satírico
Na Selva vivia uma vez um Macaco que quis ser escritor satírico.
Estudou muito, mas logo se deu conta de que para ser escritor satírico lhe faltava conhecer as pessoas e se aplicou em visitar todo mundo e ir a todos os coquetéis e observá-las com o rabo do olho enquanto estavam distraídas com o copo na mão.
Não havia quem não se encantasse com sua conversa, e quando chegava era recebido com alegria tanto pelas Macacas como pelos esposos das Macacas e pelos outros habitantes da Selva, diante dos quais, por mais contrários que fossem a ele em política internacional, nacional ou municipal, se mostrava invariavelmente compreensivo; sempre, claro, com o intuito de investigar a fundo a natureza humana e poder retratá-la em suas sátiras.
E assim chegou o momento em que entre os animais ele era o mais profundo conhecedor da natureza humana, da qual não lhe escapava nada.
Então, um dia disse vou escrever contra os ladrões, e se fixou na Gralha, e começou a escrever com entusiasmo e gozava e ria e se encarapitava de prazer nas árvores pelas coisas que lhe ocorriam a respeito da Gralha; porém de repente refletiu que entre os animais de sociedade que o recebiam havia muitas Gralhas e especialmente uma, e que iam se ver retratadas na sua sátira, por mais delicada que a escrevesse, e desistiu de fazê-lo.
Depois quis escrever sobre os oportunistas, e pôs o olho na Serpente, a qual por diferentes meios — auxiliares na verdade de sua arte adulatória — conseguia sempre conservar, ou substituir, por melhores, os cargos que ocupava; mas várias Serpentes amigas suas, e especialmente uma, se sentiriam aludidas, e desistiu de fazê-lo.
Depois resolveu satirizar os trabalhadores compulsivos e se deteve na Abelha, que trabalhava estupidamente sem saber para que nem para quem; porém com medo de que suas amigas dessa espécie, e especialmente uma, se ofendessem, terminou comparando-a favoravelmente com a Cigarra, que egoísta não fazia mais do que cantar bancando a poeta, e desistiu de fazê-lo.
Depois lhe ocorreu escrever sobre a promiscuidade sexual e desenvolveu sua sátira contra as galinhas adúlteras que andavam o dia inteiro inquietas procurando Frangotes; porém tantas dessas o tinham recebidos que teve medo de ofendê-las, e desistiu de fazê-lo.
Finalmente elaborou uma lista completa das debilidades e defeitos humanos e não encontrou contra quem dirigir suas baterias, pois tudo estava nos amigos que sentavam à sua mesa e nele próprio.
Nesse momento renunciou a ser escritor satírico e começou a se inclinar pela Mística e pelo Amor e coisas assim; porém a partir daí, e já se sabe como são as pessoas, todos disseram que ele tinha ficado maluco e já não o recebiam tão bem nem com tanto prazer.
Augusto Monterroso, "A ovelha negra e outras fábulas"
Estudou muito, mas logo se deu conta de que para ser escritor satírico lhe faltava conhecer as pessoas e se aplicou em visitar todo mundo e ir a todos os coquetéis e observá-las com o rabo do olho enquanto estavam distraídas com o copo na mão.
Como era verdadeiramente muito gracioso e as suas piruetas ágeis divertiam os outros animais, era bem recebido em toda parte e aperfeiçoou a arte de ser ainda mais bem recebido.
Não havia quem não se encantasse com sua conversa, e quando chegava era recebido com alegria tanto pelas Macacas como pelos esposos das Macacas e pelos outros habitantes da Selva, diante dos quais, por mais contrários que fossem a ele em política internacional, nacional ou municipal, se mostrava invariavelmente compreensivo; sempre, claro, com o intuito de investigar a fundo a natureza humana e poder retratá-la em suas sátiras.
E assim chegou o momento em que entre os animais ele era o mais profundo conhecedor da natureza humana, da qual não lhe escapava nada.
Então, um dia disse vou escrever contra os ladrões, e se fixou na Gralha, e começou a escrever com entusiasmo e gozava e ria e se encarapitava de prazer nas árvores pelas coisas que lhe ocorriam a respeito da Gralha; porém de repente refletiu que entre os animais de sociedade que o recebiam havia muitas Gralhas e especialmente uma, e que iam se ver retratadas na sua sátira, por mais delicada que a escrevesse, e desistiu de fazê-lo.
Depois quis escrever sobre os oportunistas, e pôs o olho na Serpente, a qual por diferentes meios — auxiliares na verdade de sua arte adulatória — conseguia sempre conservar, ou substituir, por melhores, os cargos que ocupava; mas várias Serpentes amigas suas, e especialmente uma, se sentiriam aludidas, e desistiu de fazê-lo.
Depois resolveu satirizar os trabalhadores compulsivos e se deteve na Abelha, que trabalhava estupidamente sem saber para que nem para quem; porém com medo de que suas amigas dessa espécie, e especialmente uma, se ofendessem, terminou comparando-a favoravelmente com a Cigarra, que egoísta não fazia mais do que cantar bancando a poeta, e desistiu de fazê-lo.
Depois lhe ocorreu escrever sobre a promiscuidade sexual e desenvolveu sua sátira contra as galinhas adúlteras que andavam o dia inteiro inquietas procurando Frangotes; porém tantas dessas o tinham recebidos que teve medo de ofendê-las, e desistiu de fazê-lo.
Finalmente elaborou uma lista completa das debilidades e defeitos humanos e não encontrou contra quem dirigir suas baterias, pois tudo estava nos amigos que sentavam à sua mesa e nele próprio.
Nesse momento renunciou a ser escritor satírico e começou a se inclinar pela Mística e pelo Amor e coisas assim; porém a partir daí, e já se sabe como são as pessoas, todos disseram que ele tinha ficado maluco e já não o recebiam tão bem nem com tanto prazer.
Augusto Monterroso, "A ovelha negra e outras fábulas"
segunda-feira, julho 18
Para viver...
Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é porque ela me ajuda a viverTzvetan Todorov
A terra, a mesma
A terra sempre será a mesma – só as cidades e a história vão mudar, mesmo nações vão mudar, governos e governantes vão acabar, as coisas feitas pelas mãos do homem vão acabar, os prédios sempre vão cair – só a terra vai permanecer a mesma, sempre haverá homens na terra pela manhã, sempre haverá coisas feitas pela mão de Deus – e toda essa história de cidades e congressos agora vai embora, toda a história moderna é apenas uma Babilônia reluzente soltando fumaça ao sol, atrasando o dia em que os homens outra vez terão de voltar à terra, para a terra da vida e de Deus.
– Pergunte ao índio americano que mora na terra verde que cresceu nos telhados maias – James Joyce disse – “A História é um pesadelo do qual ainda não acordei.” 10 Mas ela está acordada, agora, isso é tão certo quanto a luz do sol.
Vivemos no mundo que vemos, mas só acreditamos no mundo que não vemos. Quem já acreditou no mundo e morreu com seu nome nos lábios? Quem já disse, no momento de morrer, “Acredito no futuro desta tolice, que a banalidade, esta irrelevância – vai viver para sempre!” Quem morreu sem pensar nas primeiras e últimas coisas, no alfa e ômega da vida na terra?
Viemos a esta terra e não sabemos o que devemos fazer, e em grande desordem e confusão, gritamos no fundo de nossas almas – “Deve ser verdade, pois eu mesmo sou verdade! Verdade! Mas tudo é falso e tolo à nossa volta, e nós mesmos somos os mais falsos e mais tolos, e, oh, o que devemos fazer? Que enorme desordem surge, e onde nós estamos nela? – Finalmente não sentimos que somos verdadeiros. Sentimos que somos completamente falsos. Mas em breve vou escrever um trabalho intitulado “Razões estranhas para o fim da pena capital e por que os homens não devem mais cometer suicídio”, no qual vou mostrar que não importa o que tenha sido feito ao homem, ele não deve ser destruído ou destruir a si mesmo, porque em toda a desordem e ruína horripilante do mundo e da imaginação humana, ainda há vida e a possibilidade de redenção através do mero vislumbre da terra, através da admiração, o mais abjeto tipo de admiração se arrastando por uma rua, e nisso a coisa inteira pode ser redimida, e, FINALMENTE, verdade! Isso é tão execrável. Um assassino merece a chance de se arrepender – o suicida deve dar a si mesmo a oportunidade de maravilhar-se outra vez, de se ver outra vez. Está tudo aqui – porque aqui está o mais importante: se um morto pudesse voltar à terra para viver outra vez entre os homens, por um dia – o que quer que essa alma visse e pensasse, agora é para nós, os vivos, a única verdade, o sentimento mais central possível para um homem, o mais profundo. (E eu sempre me pergunto: – esse homem ressuscitado perderia algum tempo contemplando o bem e o mal deste mundo? Ou ele apenas banquetearia os olhos de sua alma em um olhar faminto para a vida, para a realidade da vida na terra, a coisa em si: criancinhas, homens, mulheres, aldeias, cidades, estações e mares! Um enigma! Um enigma!).
Maldito aquele que pensa e pensa mas nunca está feliz em seus pensamentos, que nunca pode dizer – “Aqui estou eu, pensando”. Não é divertido, não é brincadeira, esse meu pensar eterno, que dura boas doze horas por dia. Por que eu faço isso? É uma forma de meditação, eu na verdade pareço um maluco o dia inteiro. E como minha mãe se acostumou a isso! Acho que se eu não ficasse em casa meditando, ela teria certeza de que as engrenagens do universo tinham parado de girar. E em que penso? Que pensamentos tenho? – Que pensamentos! Uma grande hoste, multidão e mundo de pensamentos, continuo arquitetando outros e trabalhando outra vez nos velhos, alguns dos antigos estão concluídos e só são pensados como conclusões, mundos inteiros de novos chegam arrebentando meus sentimentos, e isso nunca termina. Por que penso? É minha vida, bem aí. É por isso que preciso ficar sozinho e pensando seis dias da semana, porque é minha vida. O que esses pensamentos vão me dar? – Eles não são deste mundo. Eu mesmo não sei o que eles são.
Jack Keourac, "Diários de Jack Keourac"
– Pergunte ao índio americano que mora na terra verde que cresceu nos telhados maias – James Joyce disse – “A História é um pesadelo do qual ainda não acordei.” 10 Mas ela está acordada, agora, isso é tão certo quanto a luz do sol.
Vivemos no mundo que vemos, mas só acreditamos no mundo que não vemos. Quem já acreditou no mundo e morreu com seu nome nos lábios? Quem já disse, no momento de morrer, “Acredito no futuro desta tolice, que a banalidade, esta irrelevância – vai viver para sempre!” Quem morreu sem pensar nas primeiras e últimas coisas, no alfa e ômega da vida na terra?
Viemos a esta terra e não sabemos o que devemos fazer, e em grande desordem e confusão, gritamos no fundo de nossas almas – “Deve ser verdade, pois eu mesmo sou verdade! Verdade! Mas tudo é falso e tolo à nossa volta, e nós mesmos somos os mais falsos e mais tolos, e, oh, o que devemos fazer? Que enorme desordem surge, e onde nós estamos nela? – Finalmente não sentimos que somos verdadeiros. Sentimos que somos completamente falsos. Mas em breve vou escrever um trabalho intitulado “Razões estranhas para o fim da pena capital e por que os homens não devem mais cometer suicídio”, no qual vou mostrar que não importa o que tenha sido feito ao homem, ele não deve ser destruído ou destruir a si mesmo, porque em toda a desordem e ruína horripilante do mundo e da imaginação humana, ainda há vida e a possibilidade de redenção através do mero vislumbre da terra, através da admiração, o mais abjeto tipo de admiração se arrastando por uma rua, e nisso a coisa inteira pode ser redimida, e, FINALMENTE, verdade! Isso é tão execrável. Um assassino merece a chance de se arrepender – o suicida deve dar a si mesmo a oportunidade de maravilhar-se outra vez, de se ver outra vez. Está tudo aqui – porque aqui está o mais importante: se um morto pudesse voltar à terra para viver outra vez entre os homens, por um dia – o que quer que essa alma visse e pensasse, agora é para nós, os vivos, a única verdade, o sentimento mais central possível para um homem, o mais profundo. (E eu sempre me pergunto: – esse homem ressuscitado perderia algum tempo contemplando o bem e o mal deste mundo? Ou ele apenas banquetearia os olhos de sua alma em um olhar faminto para a vida, para a realidade da vida na terra, a coisa em si: criancinhas, homens, mulheres, aldeias, cidades, estações e mares! Um enigma! Um enigma!).
Maldito aquele que pensa e pensa mas nunca está feliz em seus pensamentos, que nunca pode dizer – “Aqui estou eu, pensando”. Não é divertido, não é brincadeira, esse meu pensar eterno, que dura boas doze horas por dia. Por que eu faço isso? É uma forma de meditação, eu na verdade pareço um maluco o dia inteiro. E como minha mãe se acostumou a isso! Acho que se eu não ficasse em casa meditando, ela teria certeza de que as engrenagens do universo tinham parado de girar. E em que penso? Que pensamentos tenho? – Que pensamentos! Uma grande hoste, multidão e mundo de pensamentos, continuo arquitetando outros e trabalhando outra vez nos velhos, alguns dos antigos estão concluídos e só são pensados como conclusões, mundos inteiros de novos chegam arrebentando meus sentimentos, e isso nunca termina. Por que penso? É minha vida, bem aí. É por isso que preciso ficar sozinho e pensando seis dias da semana, porque é minha vida. O que esses pensamentos vão me dar? – Eles não são deste mundo. Eu mesmo não sei o que eles são.
Jack Keourac, "Diários de Jack Keourac"
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