quinta-feira, julho 28

Paulo Honório

Paulo Honório, concebido em 1924, nasceu em 1932. Narro essa longa gestação, por exigência de Condé, homem terrível e absurdo, que guarda fotografias e papéis inéditos de todo o gênero, da novela ao rol de roupa suja, do poema à carta de cobrança, autos de processo e correspondência amorosa, coisas obtidas pelos mais diversos meios: sorrisos, pagamento do café, do ônibus e do bonde, ameaças, gritos, carinhos, promessas, injúrias, cócegas, apresentação a cavalheiros ponderosos e chantagens, pois o monstro conhece fidalgos estrangeiros e funcionários da polícia. Para me extorquir estas declarações, Condé me ofereceu, antes de tudo, a glória. Como a sua coleção durará séculos, posso ter a certeza de que, senão a obra inteira, pelo menos uma das minhas personagens tomará pé no futuro. Em segundo lugar vem um assunto pecuniário: o malvado farejou o meu orçamento, percebe nele um desequilíbrio e dispõe-se a endireitá-lo.

— Com meia dúzia de penadas, V. ganha um dinheirão, filho de Deus.

O jeito que tenho é convencer-me, decidir contar a origem de Paulo Honório, alagoano, viçosense, chegado ao Rio há doze anos e hospedado na Ariel.
Aqui vai a tarefa. Em 1924, em Palmeira dos Índios, interior de Alagoas, encontrei dificuldade séria, pus-me a ver inimigos em toda a parte e desejei suicidar-me. Realmente julgo que me suicidei. Talvez isto não seja tão idiota como parece. Abandonando o contas-correntes, o diário, outros objetos da minha profissão, havia-me embrenhado na sociologia criminal. Que me induziu a isso? Teria querido matar alguns fantasmas que me perseguiam?

Naquele inverno de 1924, numa casa triste do Pinga-Fogo, sentado à mesa da sala de jantar, fumando, bebendo café, ouvindo a arenga dos sapos, o mugido dos bois nos currais próximos e os pingos das goteiras, enchi noites de insônia e isolamento a compor uma narrativa. Surgiu um criminoso, resumo de certos proprietários rijos existentes no Nordeste. Diálogo chinfrim, sintaxe disciplinada, arrumação lastimosa. Felizmente essas folhas desapareceram. Mas as preocupações que me afligiam desapareceram também, pelo menos adelgaçaram: ressurgi, desenferrujei a alma, tornei-me prefeito municipal. Aventuro-me a admitir, pois, que o suicídio se tenha de fato realizado.

Passaram-se anos. Deixei a prefeitura, vendi a loja, mudei-me para Maceió e fui bocejar, falar ao telefone e discutir literatura na Imprensa Oficial. Em consequência da bagunça revolucionária de 30, demiti-me — e no começo de 1932 arrastava-me de novo em Palmeira dos Índios, com vários filhos pequenos, sem ofício nem esperanças, enxergando em redor nuvens e sombras.

Nessa crítica situação voltou-me ao espírito o criminoso que em 1924 me havia afastado as inquietações — um tipo vermelho, cabeludo, violento, de mãos duras, sujas de terra como raízes, habituadas a esbofetear caboclos na lavoura. As outras figuras da novela não tinham relevo, perdiam-se a distância, vagas e inconsistentes, mas o sujeito cascudo e grosseiro avultava, no alpendre da casa-grande de S. Bernardo, metido numa cadeira de vime, cachimbo na boca, olhando o prado, novilhas caracus, habitações de moradores, capulhos embranquecendo o algodoal, paus-d’arco floridos a enfeitar a mata. E, sem recorrer ao manuscrito de oito anos, pois isto prejudicaria irremediavelmente a composição, restaurei o fazendeiro cru, à lápis, na sacristia da igreja enorme que o meu velho amigo padre Macedo andava a construir. Surgiam personagens novas, e a história foi saindo diversa da primitiva.

Até o capítulo XVIII tudo correu sem transtorno. Um dia de fevereiro, ao entrar em casa, senti arrepios. À noite, com febre, fiz o capítulo XIX, uma confusão que mais tarde, quando me restabeleci, conservei.

A doença prendeu-me à cama uns três ou quatro meses. Viagem a Maceió, exames, diagnósticos equívocos, junta médica, entrada no hospital, operação, quarenta e tantos dias com um tubo de borracha a travessar-me a barriga, delírios úteis na fabricação de um romance e de alguns contos, convalescença morosa.

Ao sair do hospital, com uma perna encrencada, coxo, na ferida ainda aberta uma tampa de esparadrapo, recomecei o trabalho, que fui terminar em Palmeira dos Índios, na minha casa do Pinga-Fogo, ouvindo os sapos, a ventania, os bois de seu Sebastião Ramos. Às vezes meu pai me visitava carrancudo, largava uns monossílabos. A carranca e fragmentos de velhas narrações dele combinaram-se na edificação de Paulo Honório. Infelizmente esse colaborador morreu em 1934 e não chegou a ler o romance.

A língua, as imagens rurais, apanhei-as em consultas pacientes a meus irmãos e cunhados, gente matuta. Usei com abundância antigas expressões portuguesas que circulam em todo o Nordeste.

Finda a escrita, copiei-a, tentando suprimir-lhe excrescências e acessórios dispensáveis. Houve, pois, três redações: uma completamente abandonada em 1924, duas em 1932. Esforcei-me em demasia para conseguir simplicidade.
Em novembro Paulo Honório me parecia mais ou menos apresentável. Acompanhou-me à capital. Valdemar Cavalcanti datilografou-o. Gastão Cruls editou-o. E os críticos lhe dispensaram algumas cortesias.

Em Palmeira dos Índios, onde foi gerado, ninguém deu por ele. Apenas seu Digno, parente de minha mãe, vaqueiro, informado de que certo livro tinha sido feito por mim, desconfiou, duvidou. E como lhe falassem com segurança, pegou a brochura, mediu-a, pesou-a, examinou-lhe a capa, a ilustração de Santa Rosa — e opinou:

— Quem diria? Sim, senhor. Está um trabalhinho direito.

Graciliano Ramos, "Garranchos"

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