quarta-feira, julho 6

O bonde

Uma quinzena de quilômetros separava a praia da cidade, através de uma paisagem levemente acidentada, de ladeiras cobertas de vinha, trajeto ladeado (à direita, vindo do mar) por opulentas residências do século anterior, separadas umas das outras por dois ou três quilômetros mais ou menos escondidos pelas árvores dos seus jardins, oferecendo como que um inventário daquilo que a vaidade de fortunas recém-adquiridas ou consolidadas tinha podido inspirar aos proprietários e aos arquitetos, que se dobravam aos desejos daqueles (ou até mesmo se antecipavam), numa época em que as ambições de uma classe provinciana abastada e de um nível cultural médio (inspirando-se às vezes nas decorações medievais ou orientais de óperas vistas em Paris durante alguma viagem de núpcias) ofereciam aos olhares um leque arquitetônico (torres coroadas de graciosas balaustradas em terracota ou, ao contrário, maciças, quadradas e vagamente sarracenas), de um gosto às vezes duvidoso mas, no conjunto, agradável, sem ostentação demasiado incômoda (exceto uma construção mais recente), de nomes anacrônicos (como seus móveis Luís Felipe ou Napoleão III) e de um ingênuo frescor, nomes como “Miraflores” ou, simplesmente, “Aloés”.

Em ambos os sentidos (da cidade para o mar e inversamente), dois bondes saíam na mesma hora e cruzavam-se na metade do caminho, não longe justamente da propriedade cujo nome (“Brincado”) fazia jus à sua simplória fachada entalhada (semelhante a esses brinquedos de cartão, essas fortalezas ou castelos que, no Natal, damos às crianças) e alimentava obscuras reticências sobre as origens e a data da fortuna de quem a fizera construir, os atuais residentes (descendentes do romântico novo rico — ou talvez compradores recentes) sendo mantidos pela pequena sociedade das outros “vilas” não como numa espécie de ostracismo mas pura e simplesmente ignorados, o que, de alguma maneira, dava-lhes a aura de um prestígio feito ao mesmo tempo de desprezo e de suspeita, esta última nutrida pelo fato de que, sob certo ângulo, antes de o bonde tomar a via da “garagem” (nome que se dava à duplicação das vias que, no meio do caminho, permitia às duas locomotivas se cruzar), bem parecia que a medíocre arquitetura fortificada se limitava à fachada, por trás da qual, durante um breve instante, só se avistava um vasto galpão de paredes sem janelas, nem sequer rebocado, cuja cobertura de telhas acabava de adaptar-se às seteiras medievais.

A Alameda dos Castanheiros que o bonde acompanhava em fim de trajeto diminuindo aos poucos a velocidade, paralela ao bulevar Wilson a partir do monumento aos mortos construído na entrada do largo municipal, parecia ser, à tarde (como se houvesse um vínculo entre o monumental monumento e eles), o ponto de encontro de uma meia dúzia desses pequenos veículos com um banco de vime escuro, duas rodas traseiras e outra pequena, na frente, na ponta de uma longa forquilha manejável ao longo da qual havia uma correia de bicicleta descendo da dupla manivela que servia ao mesmo tempo de guidom e acionada pelas mãos desses personagens (ou melhor, parecia, cópias exatas do mesmo personagem — pois todos se assemelhavam: mesmo rosto ossudo e duro de rapace, mesmo bigode preto de pontas desfiadas (ou parodicamente encrespadas com ferro de passar), também mesma bagana de cigarro enrolado à mão, mesmo leque de fitas desbotadas na lapela do jaquetão, mesmo encerado preto e brilhante estendido, com vincos e amassados, até o estreito piso onde nenhum pé repousava, personagens que mamãe designava com daria para dizer uma espécie de alegre maldade um nome composto (homens-tronco), o que provocava estremecimento (assim como morcego, centopeia e viúva-negra) e que na sua boca e no seu tom tinha algo de infamante, macabro e desesperado, como se ela os acusasse, não só de exibir a doença, mas também simplesmente de existir, de escapar vivos, embora praticamente cortados em dois, da guerra que lhe tinha levado o único homem que amara, como se essa denominação atroz subentendesse uma suspeita de covardia e ao mesmo tempo de inveja, de ciúme e de piedade, ela que tinha enfim renunciado ao véu de crepe, atrás do qual, não sem alguma ostentação, escondera o rosto bem além dos limites decentes de um luto, mas que continuava a só vestir cores escuras e que talvez (assim como a sua participação numa certa associação caritativa a levava duas vezes por semana a ensinar o catecismo para alguns meninos barulhentos numa capela lateral da catedral) fosse ao hospital ou ao hospício, ou ao asilo (devia mesmo existir um lugar, um ponto comum, a partir do qual, à tarde, eles se dirigiam para a Alameda dos Castanheiros, impassíveis, assustadores, com seus bigodes untados, narizes de abutre, carrinhos e corpos martirizados, num castigo permanente, numa recriminação permanente aos vivos), onde moravam esses infelizes para levar-lhes alguma doçura ou talvez mesmo ainda que detestasse esse vício, mas em lembrança certamente do serviço de fumar trazido do Extremo Oriente pelo homem do seu luto e no qual (bandeja, lata de fumo e cinzeiros) se podia ver, esmaltado, azul-turquesa, pássaros de barriga rosa voar entre juncos acima de extensos nenúfares), talvez mesmo, então, pacotes de fumo ruim, desses encontrados nas tabacarias, cúbicos, enrolados com um papel cinza de má qualidade, fechados com a etiqueta branca da companhia de tabaco, aos quais ela não esquecia de acrescentar um bloquinho de folhas para cigarro, cujas marcas (“Cruz de Arroz” ou “JOB”) poderiam significar incitações a persistir no martírio, se a cruz desenhada sobre um fundo anil não se referisse simplesmente a um nome de fábrica e se a sigla JOB, em letras douradas sobre fundo branco, não resultasse, como todos sabiam, da ampliação em forma de losango do ponto separando as iniciais do fundador da firma (um certo senhor Joseph Bardou), a exemplo da cruz sem qualquer vocação para lembrar os sofrimentos do personagem bíblico. 
Claude Simon, "O Bonde"

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