sexta-feira, julho 1

Músicos de rua

“Músicos de rua são considerados um incômodo” pelos moradores tão sinceros da maioria das praças de Londres, que tiveram o trabalho de inserir esse polido trecho de crítica musical numa placa contendo ainda outras regras para o decoro e a paz na praça. Mas nenhum artista dá a menor atenção à crítica, e o artista das ruas desdenha solenemente do julgamento do público britânico. É notável que, apesar da desaprovação que observei – e que de quando em quando é reforçada por um policial britânico –, o músico ambulante está na realidade em alta. A banda alemã dá um concerto por semana, com a mesma regularidade que a orquestra do Queen’s Hall; de igual modo, os tocadores de realejo italianos são fiéis ao seu público e reaparecem pontualmente sobre o mesmo tablado; somando-se a esses mestres reconhecidos, todas as ruas recebem a visita esporádica de alguma estrela erradia. O robusto teutônico e o italiano moreno certamente vivem de alguma coisa mais substancial que a satisfação artística de suas almas; e é portanto provável que as moedas, que está abaixo da dignidade do verdadeiro amante da música jogar pela janela da sala, sejam oferecidas na escadinha dos fundos. Existe um público, em suma, que está disposto a pagar até mesmo por uma melodia tão rudimentar como essa.



A música, para fazer sucesso numa rua, deve ser alta antes de ser bonita; por isso é que os instrumentos prediletos são de metal, e podemos concluir que o músico de rua que usa a própria voz ou um violino tem uma razão genuína para sua escolha. Já observei violinistas que obviamente estavam usando seu instrumento para expressar algo que tinham no próprio coração enquanto balançavam o corpo na beira da calçada na Fleet Street; e as moedas, embora as roupas em frangalhos as tornassem aceitáveis, eram, como são para todos os que amam seu trabalho, um pagamento em tudo incongruente. De fato, certa vez segui um velho de aparência lamentável que, de olhos fechados para poder perceber melhor as melodias de sua alma, se pôs a tocar literalmente de Kensington a Knightsbridge num transe de êxtase musical do qual uma moeda seria um despertar desagradável. É de fato impossível não respeitar qualquer um que tenha dentro de si um deus como esse; porque a música que se apodera da alma, e que assim torna esquecidas a nudez e a fome, deve ser divina em sua natureza. É verdade que as melodias que saíam de seu esforçado violino eram em si mesmas risíveis, mas ele, por certo, não. Seja qual for o nível da realização, sempre devemos tratar com ternura os esforços dos que se empenham com sinceridade para expressar a música que existe neles; pois o dom da concepção é por certo superior ao dom da expressão, e não é disparatado supor que os homens e mulheres que arranham por harmonias que jamais vêm, enquanto o trânsito vai estrondando ao lado, sejam tão fortemente possuídos, embora fadados a nunca transmitir isso, quanto os mestres cuja eloquência fácil encanta milhares a ouvi-los.

Há talvez mais de um motivo para que os moradores das praças olhem para o músico de rua como um incômodo; sua música perturba o dono da casa em suas ocupações legítimas, e um espírito disciplinado se irrita com a natureza erradia e não ortodoxa de tal ofício. Artistas de toda espécie têm sido invariavelmente vistos com desfavor, sobretudo pelo público inglês, não apenas por causa das excentricidades do temperamento artístico, mas também porque nos condicionamos a uma tal excelência de civilização que qualquer tipo de expressão tem algo quase indecente – decerto não reticente – a rodeá-lo. Poucos pais, observamos, querem que seus filhos se tornem pintores ou poetas ou músicos, não somente por razões mundanas, mas porque em seu próprio coração eles acham ser indigno de um homem dar expressão aos pensamentos e emoções que a arte revela e que deveria ser obrigação de um bom cidadão reprimir. Desse modo, por certo, a arte não é estimulada; e é provavelmente mais fácil para um artista do que para alguém de qualquer outra profissão cair na sarjeta. O artista não só é visto com desprezo, mas também com uma suspeita que tem em si não pouco medo. É possuído por um espírito que a pessoa comum não pode compreender, mas que evidentemente é muito poderoso e exerce sobre o artista uma influência tão grande que ele, quando ouve sua voz, sempre tem de se levantar e segui-lo.

Hoje em dia não somos crédulos e, apesar de não ficarmos à vontade na presença de artistas, fazemos todo o possível para domesticá-los. Nunca se teve tanto respeito pelo artista de sucesso como hoje em dia; e nisso talvez possamos ver um sinal do que muitas pessoas vaticinaram, e que os deuses que foram para o exílio, quando os primeiros altares cristãos se ergueram, haverão de voltar para se comprazer novamente como queiram. Muitos escritores tentaram localizar esses antigos pagãos e asseveraram encontrá-los sob o disfarce de animais e no abrigo de matas e montanhas longínquas; mas não é fantástico supor que, enquanto todos estão à sua procura, estejam eles preparando seus bruxedos bem no meio de nós, e que esses estranhos idólatras que não se põem às ordens de ninguém e são inspirados por uma voz que é diversa da humana em seus ouvidos não são de fato como as outras pessoas, mas ou são os próprios deuses ou seus profetas e sacerdotes sobre a terra. Decerto eu deveria inclinar-me a atribuir aos músicos uma tal origem divina, de qualquer modo, e provavelmente é alguma suspeita dessa espécie que nos leva a persegui-los como o fazemos. Pois se o encadeamento de palavras, que todavia pode transmitir à mente uma informação útil, ou a combinação de cores que pode representar um objeto tangível são ocupações que quando muito não conseguem senão ser toleradas, como iremos considerar o homem que passa seu tempo entoando canções? A ocupação dele não é a menos respeitável – a menos útil e necessária – das três? É claro que, ouvindo música, você nada pode levar daí que lhe seja de serventia em seu dia de trabalho; mas um músico não é simplesmente uma criatura útil; para muitos, creio eu, ele é o mais perigoso de toda a tribo de artistas. É o ministro do mais feroz dos deuses, que ainda não aprendeu a falar com voz humana nem a transmitir à mente o aspecto das coisas humanas. É porque a música incita em nós alguma coisa que é feroz e inumana como ela mesma – um espírito para se eliminar e esquecer de bom grado – que desconfiamos dos músicos e relutamos em nos colocar sob seu poder.

Ser civilizado é ter tomado a medida de nossas próprias capacidades e mantê-las num estado perfeito de disciplina; mas um de nossos dons tem, tal como o concebemos, um poder de beneficência tão reles e um poder tão desmedido de danos que, longe de cultivá-lo, fizemos todo o possível para estropiá-lo e abafá-lo. Olhamos para os que puseram sua vida a serviço desse deus como os cristãos olham para os fanáticos adoradores de algum ídolo oriental. E isso talvez decorra de uma ansiosa presciência de que, quando os deuses pagãos voltarem, o deus que nunca adoramos haverá de se vingar de nós. Será o deus da música que há de insuflar loucura em nosso cérebro, que há de rachar as paredes de nossos templos e nos levar a abominar nossa vida sem ritmo para dançar e circular para sempre em obediência à voz dele.

Tem aumentado o número dos que declaram, como se confessassem sua imunidade a alguma fraqueza bem comum, não ter ouvido para música, ainda que tal confissão deva ser tão grave quanto a de alguém que é cego para as cores. Ao modo como a música é ensinada e apresentada por seus ministros cabe em certa medida a responsabilidade por isso. A música é perigosa, como nós sabemos, e os que a ensinam não têm coragem de transmiti-la em todo o seu vigor, por medo do que poderia acontecer à criança que bebesse goladas tão intoxicantes. Todo o ritmo e harmonia foram prensados, como flores secas, nas escalas claramente divididas, nos tons e semitons do piano. O atributo mais fácil e mais seguro da música – sua melodia – é ensinado, mas ao ritmo, que é sua alma, permite-se que escape como a criatura alada que é. Assim, as pessoas instruídas, às quais se ensinou o que lhes é mais seguro saber de música, são as que mais costumam se gabar de sua falta de ouvido, enquanto as não instruídas, cujo sentido de ritmo não se divorciou nem foi tornado subsidiário de seu sentido de harmonia, são as que nutrem maior amor pela música e as que ouvimos com mais frequência a produzi-la.

Pode ocorrer de fato que o sentido de ritmo seja mais forte em pessoas cuja mente não foi elaboradamente treinada para outros objetivos, como é verdade que os selvagens que não têm nenhuma das artes da civilização são muito sensíveis ao ritmo, antes de serem despertados para a música em si. A batida do ritmo na mente aparenta-se à batida do pulso em nosso corpo; e assim, apesar de muitos serem surdos para a melodia, é raro alguém organizado de um modo tão grosseiro que não consiga ouvir o ritmo de seu próprio coração em palavras e movimentos e música. É por ela nos ser assim tão inata que não podemos jamais silenciar a música, como não podemos impedir nosso coração de bater; e é também por essa razão que a música é tão universal e tem o estranho e ilimitado poder de uma força natural.

Malgrado tudo o que fizemos para reprimi-la, a música ainda tem tal poder sobre nós, sempre que nos damos aos seus meneios, que não há quadro, por mais justo que seja, nem palavras, por mais grandiosas, que dela se aproximem. Já nos acostumamos com a visão estranha de um salão repleto de pessoas civilizadas se movendo a passos rítmicos sob o comando de uma banda de músicos, mas pode ser que algum dia isso venha a sugerir as vastas possibilidades que estão na força do ritmo, e toda a nossa vida será então revolucionada, como o foi quando pela primeira vez o homem se deu conta da força do vapor. O realejo, por exemplo, por causa de seu ritmo rudimentar e enfático, põe as pernas de todos os passantes a andar em cadência; uma banda no centro da feroz discórdia de carruagens e charretes de aluguel seria mais eficiente do que qualquer guarda de trânsito; não apenas o cocheiro, mas o próprio cavalo sentir-se-ia obrigado a manter o tempo da dança e a seguir qualquer medida de trote ou meio galope que as trombetas ditassem. Até certo ponto esse princípio já foi reconhecido no exército, onde as tropas são inspiradas ao ritmo da música para marchar em batalha. Se o sentido de ritmo estivesse em plena atividade em todas as mentes, deveríamos, se não me engano, notar um grande progresso não só na organização de todos os assuntos da vida cotidiana, mas também na arte de escrever, que é quase uma aliada da música e degenerou principalmente por se ter esquecido da adesão dessa arte. Deveríamos inventar – ou melhor, relembrar – os inumeráveis metros que por tanto tempo ultrajamos e que poderiam restaurar a poesia e a prosa segundo as harmonias que os antigos ouviam e observavam.

O ritmo, sozinho, pode levar facilmente a excessos; mas, se o ouvido dominasse seu segredo, melodia e harmonia se uniriam a ele, e as ações antes executadas por intermédio do ritmo, com exatidão e a tempo, seriam feitas agora pelo que for de melodia que é natural a cada um. As conversas, por exemplo, não só obedeceriam às suas convenientes leis métricas, tal como as ditam nosso sentido de ritmo, mas também seriam inspiradas por caridade, amor, sabedoria, soando a rabugice, e o sarcasmo, ao ouvido corpóreo, como notas em falso e discórdias terríveis. Todos nós sabemos que as vozes de amigos são discordantes depois de ouvirmos boa música, porque perturbam o eco da harmonia rítmica que naquele momento faz da vida um todo musical e unificado; e parece provável, considerando isso, que há uma música no ar, pela qual nós sempre estamos apurando o ouvido e que apenas em parte nos é tornada audível pelas transcrições que os grandes músicos são capazes de preservar. Em florestas e lugares solitários, um ouvido atento pode detectar algo muito parecido com uma vasta pulsação e, se nossos ouvidos fossem educados, poderíamos ouvir também a música que a acompanha. Apesar de não ser humana essa voz, ela é contudo uma voz que alguma parte de nós pode, se a deixarmos, compreender, e é talvez por não ser humana a música que ela é a única coisa feita pelos homens que nunca pode ser ruim nem feia.

Se em vez de bibliotecas, por conseguinte, os filantropos doassem música aos pobres, de modo que em cada esquina de rua as melodias de Beethoven e Brahms e Mozart pudessem ser ouvidas, é provável que todos os crimes e contendas logo se tornassem desconhecidos, podendo fluir melodiosos, em obediência às leis da música, o trabalho das mãos e os pensamentos da mente. E seria então um crime tomar os músicos de rua ou qualquer um que interprete a voz do deus por outro alguém que não seja um homem santo, e do nascer ao pôr do sol nossa vida poderia passar ao som de música.
Virginia Woolf, National Review n. 265, mar. 1905

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