É inútil acreditar que podemos sair curados de vinte anos como aqueles que passamos. Os que foram perseguidos nunca mais reencontrarão a paz. Um toque insistente de campainha à noite não pode significar outra coisa para nós que não a palavra “delegacia”. E é inútil dizer e repetir a nós mesmos que por trás da palavra “delegacia” agora talvez haja rostos amigáveis, a quem poderíamos pedir proteção e assistência. Em nós essa palavra sempre provoca desconfiança e assombro. Se observo meus meninos dormindo, penso com alívio que não precisarei acordá-los no meio da noite para fugir. Mas não é um alívio pleno e profundo. Sempre acho que mais cedo ou mais tarde precisaremos nos levantar de novo na noite e escapar e deixar tudo para trás, quartos quietos e cartas e lembranças e roupas.
Uma vez sofrida, jamais se esquece a experiência do mal. Quem viu as casas desabando sabe muito bem quanto são precários os vasos de flor, os quadros, as paredes brancas. Sabe muito bem de que é feita uma casa. Uma casa é feita de tijolos e argamassa, e pode desabar. Uma casa não é tão sólida. Pode desabar de um momento para outro. Atrás dos serenos vasos de flor, atrás das chaleiras, dos tapetes, dos pavimentos lustrosos de cera há o outro vulto verdadeiro da casa, o vulto atroz da casa caída.
Não nos curaremos nunca desta guerra. É inútil. Jamais seremos gente tranquila, gente que pensa e estuda e modela sua vida em paz. Vejam o que aconteceu com nossas casas. Vejam o que aconteceu com a gente. Nunca vamos ser gente sossegada.
Conhecemos a realidade em sua face mais terrível. Mas já nem sentimos mais desgosto. Ainda há alguns que se queixam de que os escritores se servem de uma linguagem amarga e violenta, que contam coisas duras e tristes, que apresentam a realidade em seus termos mais desolados.
Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em nenhuma das coisas que fazemos. E talvez este seja o único bem que nos veio da guerra. Não mentir e não tolerar que os outros mintam a nós. Assim somos, os jovens de agora, assim é a nossa geração. Os mais velhos ainda são muito apegados à mentira, aos véus e às máscaras que recobrem a realidade. Nossa linguagem os entristece e ofende. Não entendem nossa atitude diante da realidade. Nós estamos perto da substância das coisas. Esse é o único bem que a guerra nos deu, mas só nos deu a nós, jovens. Aos outros, mais velhos que nós, a guerra só trouxe insegurança e medo. E também nós, os jovens, temos medo, também nós nos sentimos inseguros em nossas casas, mas não estamos indefesos diante desse medo. Temos uma dureza e uma força que os outros, antes de nós, jamais conheceram.
Para alguns a guerra só começou com a guerra, com as casas desmoronadas e os alemães, mas para outros ela começou antes, desde os primeiros anos do fascismo, e por isso a sensação de insegurança e de permanente perigo é ainda maior. O perigo, a sensação de precisar se esconder, a sensação de precisar deixar de repente o calor da cama e das casas, começou, para tantos de nós, há muitos anos. Insinuou-se nas diversões juvenis, nos acompanhou nos bancos de escola e nos ensinou a ver inimigos em todo lado. Assim foi para muitos de nós, na Itália e em outros lugares, e se acreditava que um dia poderíamos caminhar em paz pelas ruas de nossas cidades; mas hoje, quando talvez possamos caminhar em paz, hoje nos damos conta de que não nos curamos daquele mal. Assim somos constrangidos a buscar sempre novas forças, sempre uma nova dureza para contrapor a qualquer realidade. Somos impelidos a buscar uma serenidade interior que não nasce dos tapetes e dos vasos de flor.
Não há paz para o filho do homem. As raposas e os lobos têm seus covis, mas o filho do homem não tem onde pousar a cabeça. Nossa geração é uma geração de homens. Não é uma geração de raposas e de lobos. Cada um de nós teria grande vontade de pousar a cabeça em algum lugar, cada um gostaria de ter uma pequena toca enxuta e aquecida. Mas não há paz para os filhos dos homens. Cada um de nós uma vez na vida se iludiu achando que podia dormir sobre qualquer coisa, apossar-se de uma certeza qualquer, de uma fé qualquer, e então repousar o corpo. Mas todas as certezas de antes nos foram arrancadas, e a fé jamais será algo em que enfim se possa mergulhar no sono.
E agora somos gente sem lágrimas. O que comovia nossos pais já não nos comove nada. Nossos pais e as pessoas mais velhas que nos reprovam pelo modo como criamos os meninos. Queriam que mentíssemos aos nossos filhos como eles mentiam a nós. Queriam que nossas crianças se divertissem com bonecos de pelúcia em graciosos cômodos pintados de rosa, com arvorezinhas e coelhos estampados nas paredes. Queriam que cercássemos de véus e de mentiras a infância deles, que lhes ocultássemos cuidadosamente a realidade em sua verdadeira substância. Mas nós não podemos fazer isso. Não podemos fazer isso com crianças que acordamos no meio da noite e vestimos ansiosamente no escuro, para fugir ou nos esconder ou porque a sirene de alarme rasgava o céu. Não podemos fazer isso com crianças que viram o assombro e o horror em nossa cara. Não podemos começar a contar a essas crianças que elas foram trazidas pela cegonha, ou lhes dizer que os mortos partiram numa longa viagem.
Há um abismo intransponível entre nós e as gerações anteriores. Os perigos que eles corriam eram irrisórios, e suas casas só desmoronavam muito raramente. Terremotos e incêndios não eram fenômenos que se verificassem com frequência e para todos. As mulheres tricotavam malhas, ordenavam o almoço à cozinheira e recebiam as amigas em casas que não desabavam. Cada qual meditava e estudava e esperava organizar sua vida em paz. Era um outro tempo, e talvez se vivesse bem. Mas nós estamos atados a esta nossa angústia e, no fundo, satisfeitos com nosso destino de homens.
Natalia Ginzburg, "As pequenas virtudes"
Natalia Ginzburg, "As pequenas virtudes"
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