Reconheço este cheiro, vem de um lugar onde aprendi a avaliar o mundo, onde me dei conta de que existia alguém a falar no interior dos meus pensamentos, alguém que dizia “eu” e se referia a mim. Reconheço este cheiro desde que o senti pela primeira vez, na casa dos meus pais que, por sua vez, era uma decantação do cheiro da casa dos meus avós. Neste cheiro, há uma mistura de madeira e vinho, de comida cozida, sopa, também um cheiro de pele das pessoas, provavelmente o sol deixa um aroma na pele, reação físico-química, mistura de terra e tempo. Reconheço este cheiro, cheira a Portugal.
Na sala, a televisão está a passar um canal português com uma apresentadora que conheço desde pequeno e que conta, com pronúncia de Lisboa, uma piada qualquer que não pode ser traduzida para nenhuma outra língua. Estou sentado no sofá, entre almofadas. A mesa, diante de mim, chega-me aos joelhos e está coberta por uma toalha de renda, feita durante serões enormes por uma mulher com muita paciência. Às vezes, essa mulher chega para insistir que coma qualquer coisa. Recuso como a minha mãe me ensinou há muitos anos. Recusaria exactamente da mesma maneira se estivesse com fome, o que já aconteceu noutras ocasiões. De certeza que não quer comer nada? A dona da casa admira-se com a minha recusa, como se a minha resposta fosse bizarra, fora da lógica do mundo. Esse tom também faz parte do protocolo desta circunstância. Ela ainda insistirá mais algumas vezes e eu ainda recusarei mais algumas vezes. Entretanto, debaixo de tudo isso, a respiração das alcatifas, o fiozinho de fumo que se levanta de uma chaminé na paisagem daquele quadro estampado, o castiçal de cobre com velas novas, que nunca arderam.
E, quando saio à rua, estou em Newark, nos arredores de Paris, em Toronto, no Luxemburgo, em Joanesburgo, em Lausane. A espessura do ar mudou de repente. Afinal, há mais fronteiras do que aquelas em que se tem de preencher pequenos papéis com o nome, o número do passaporte e cruzes numa coluna de quadradinhos a que se tem de responder sempre NÃO. Traz plantas? Não. Tem pacemaker? Não. Traz mais de 10 mil dólares em dinheiro. Não.
Sair dessa casa, onde há loiças com o emblema do Benfica e molduras com fotografias tiradas no largo da aldeia, e, logo de seguida, pisar o passeio de qualquer uma dessas cidades é muito semelhante ao teletransporte do Star Trek. Estamos num lugar e, de repente, materializamo-nos noutro. Com uma ligeira tontura, sigo um casal que me fala de quando chegaram a esta cidade, eram tão novos, tudo isto era tão diferente. Chegou a hora de jantar. Entramos num restaurante e, de novo, sou teletransportado. O empregado tem bigode, chama-se Armando e recomenda-nos o bacalhau à lagareiro. Na televisão, a apresentadora continua com o mesmo sorriso e o mesmo vestido brilhante. Peço um Sumol de laranja. Será que tem? Claro que tem. O fundo da garrafa desenha um círculo na toalha de papel.
Em agosto, a casa de onde saí há minutos, terá os estores fechados. A cada dois dias, escutar-se-á a chave na fechadura. Será uma vizinha que virá regar as flores: a torneira aberta de encontro ao fundo do regador de plástico. E também o restaurante estará fechado, terá um letreiro em português a dizer: encerrado para descanso do pessoal, reabre em setembro. E, aos sábados, quem quiser cozido, terá de fazê-lo em casa. Isso, claro, se conseguir encontrar chouriços, morcelas e farinheiras, se tiver enchidos no congelador ou se o senhor do talho não tiver ido passar férias à terra.
José Luís Peixoto
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