Pintura e escrita
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Andrey Vasnetsov |
Aconteceu muitas vezes a pintura vir solicitar a minha escrita. Se numa tarde longínqua de 1965 eu não tivesse entrado no Prado e não tivesse ficado cativo perante Las Meninas de Velázquez, incapaz de abandonar a sala até ao fecho do museu, nunca teria escrito O Jogo do Reverso. A mesma coisa vale para a forte sensação que experimentei em criança diante dos frescos do convento de S. Marcos em Florença, revisitados frequentemente em adulto, e que um belo dia regressou com prepotência, desembocando nas páginas de Os Voláteis de Fra Angelico. Mas também algumas páginas de Tristano Morre não existiriam sem O Cão Sepultado na Areia, de Goya. Da imagem para a voz o caminho pode ser breve, se os sentidos responderem. A retina comunica com o tímpano e «fala» ao ouvido de quem olha; e, para quem escreve, a palavra escrita é sonora: ouve‑a primeiro na cabeça. Vista, ouvido, voz, palavra. Mas neste percurso o fluxo não é em sentido único, a corrente é alternada, volta a partir de onde chegou, regressa ao ponto de partida. E a palavra, ao regressar, traz consigo outras imagens que antes não existiam: inventou‑as ela. Assim acontece em muitos destes contos. Se a imagem veio desencadear a escrita, a escrita por sua vez conduziu essa imagem para outro lugar, para aquele algures hipotético que o pintor não pintou. A estória desencadeada pelo visível agarrou o «Aquilo‑que‑se‑vê» para vaguear à sua vontade no território que o artista nos omitiu, o que teria podido pintar ou fotografar mas que suprimiu. «A alma imagina aquilo que não vê», diz Leopardi. O território da escrita é a imaginação que vai além da imagem; é a estória das figuras mas também o seu reverso e a sua multiplicação, a narração do desconhecido que as envolve.Antonio Tabucchi, "Estórias com Figuras"
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