Em carta, falou mal do livro para amigos: “Uma boa ideia arruinada”, reclamou para um. “Ficou uma barafunda e tanto”, admitiu para outro. “Não teria ficado tão soturno se eu não estivesse doente”, explicou para um terceiro.
Para Fredric Warburg, um dos sócios da editora, Orwell avisou: “Não apostaria numa vendagem alta”.
Se A Revolução dos Bichos (1945), seu livro anterior, faturou, até a data de sua morte, 12 mil libras, 1984 (1949), romance distópico que o próprio autor descreveu como “abominável” e “horroroso”, deveria faturar 500 libras.
Errou por muito.
“Orwell escreveu seu derradeiro livro desenganado. Àquela altura, não estava preocupado com o sucesso da obra, mas com a mensagem que buscava transmitir”, explica o advogado e escritor José Roberto de Castro Neves, autor do prefácio de 1984 (Nova Fronteira, 2021).'
“Numa história que se repete, ridículos tiranos (e perigosos) surgem, ameaçando a liberdade. Por vezes, têm êxito – e a civilização anda para trás. Hoje, o mundo assiste a uma guerra, com a invasão da Ucrânia. O chefe de Estado do país invasor determinou que, no seu país, não se pode usar o termo ‘guerra’, nem se admite qualquer crítica às forças armadas. Naquela nação, 1984 não é ficção, mas realidade. Isso dá uma boa mostra do motivo pelo qual esse livro ainda nos emociona”, disse.
O tempo provou que George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, estava enganado a respeito de seu último livro. Em menos de um ano, 50 mil cópias foram vendidas na Grã-Bretanha e outras 170 mil nos EUA.
Setenta e quatro anos depois de seu lançamento, no dia 8 de junho de 1949, continua frequentando a lista dos mais vendidos. Estima-se que tenha sido traduzido para 65 idiomas e vendido mais de 100 milhões de exemplares.
Em janeiro de 2017, suas vendas registraram um pico de 9.500% nos EUA. O motivo? O porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, declarou que a cerimônia de posse do presidente Donald Trump atraiu o maior público da história. Questionada sobre a falsidade da informação, a então assessora especial, Kellyanne Conway, não desmentiu o colega e, ainda, criou a expressão “fatos alternativos”.
Na obra-prima de Orwell, duplipensar é aceitar duas crenças simultaneamente contraditórias. Ou, como diria o autor, “contar mentiras deliberadas e ao mesmo tempo acreditar genuinamente nelas”.
“Muita gente pensa que, por ter feito sucesso nos EUA, 1984 é uma crítica ao comunismo. Não é. É uma crítica ao totalitarismo”, pondera o jornalista e escritor Ronaldo Bressane, autor do posfácio da edição da Tordesilhas.
“Toda semana, o ministro da Economia Paulo Guedes dizia que o Brasil estava ‘decolando’. Enquanto isso, os indicadores econômicos mostravam exatamente o contrário”.
“O intuito das ‘fake news’”, prossegue Bressane, “é criar uma narrativa, uma visão de mundo, para os apoiadores de governos fascistas e autoritários acreditarem em algo que não está acontecendo, uma realidade paralela”.
Um dos primeiros a gostar de 1984 foi o próprio Warburg. “É um dos livros mais apavorantes que já li”, afirmou.
Segundo o biógrafo Bernard Crick, autor de George Orwell: A Life (1980), partiu dele, Warburg, a ideia de mudar o título para algo mais comercial. Se dependesse de Orwell, 1984 teria entrado para a história como O Último Homem da Europa.
Quanto ao porquê de Orwell ter escolhido o título de 1984, não há consenso. A hipótese mais aceita é a de que se trata de uma inversão satírica de 1948, o ano em que o livro foi concluído.
“É sempre importante ler e reler 1984. Ainda hoje, é o romance que melhor descreve as engrenagens do poder. Avisa o leitor para ficar atento a abusos e manipulações, e mostra até onde isso pode nos levar”, alerta o jornalista e escritor Dorian Lynskey, de O Ministério da Verdade – Uma Biografia de 1984, o Romance de George Orwell (Companhia das Letras, 2021).
“Winston Smith termina a história como herói, mas começa como cúmplice dos crimes praticados pelo Big Brother. Orwell não estava escrevendo sobre mocinhos e bandidos. Estava dizendo que todos nós temos potencial para sermos corrompidos, mas que podemos escolher entre nos entregar ao poder e à ideologia ou resistir a eles”.
A pedido de Orwell, um dos primeiros exemplares foi enviado para Aldous Huxley, seu professor de francês na escola de Eton, na Inglaterra.
Em carta, o autor de Admirável Mundo Novo (1932) elogiou 1984: “Não preciso te dizer o quão bom e profundamente importante o livro é”, escreveu em 21 de outubro de 1949.
1984 é o ano em que se passa a história. O mundo está dividido em três superpotências. Ou, como prefere Orwell, superestados. São eles: Oceânia, Eurásia e Lestásia.
O protagonista da história, um funcionário público chamado Winston Smith, vive na Oceânia, o maior dos três. Compreende o Reino Unido, a América, a Oceania, grande parte do sul da África e dois países da Europa: Islândia e Irlanda.
Já a Eurásia abrange toda a Europa (exceto Reino Unido, Islândia e Irlanda), quase toda a Rússia e pequena parte da Ásia. A Lestásia engloba boa parte da Ásia, como China, Japão e Coreia, parte da Índia e algumas nações vizinhas.
Winston Smith, de 39 anos, vive em Londres, a capital da Pista de Pouso Um, anteriormente conhecida como Grã-Bretanha. Trabalha em um dos quatro ministérios: o da Verdade, no Departamento de Documentação. Na fachada do edifício, os lemas do Partido: “Guerra é Paz”, “Liberdade é Escravidão” e “Ignorância é Força”.
Seu trabalho é reescrever a história segundo a versão oficial do Partido. Para tanto, falsifica documentos. “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”, diz um trecho da obra.
Os outros três ministérios são: da Paz, do Amor e da Fartura. O primeiro supervisiona a guerra, o segundo espiona os cidadãos e o terceiro controla a economia.
Ao longo da história, Winston Smith comete pelo menos dois delitos graves: escreve um diário e se apaixona por Júlia, uma colega de trabalho. Certo dia, a funcionária do Departamento de Ficção entrega a Winston um bilhete com uma mensagem subversiva: “Eu te amo”. Sim, pensar e amar são crimes em Oceânia. Juntos, Winston e Júlia planejam ingressar num movimento clandestino de resistência, a Confraria.
Quem governa a Oceânia é o líder do Partido, o Grande Irmão, que tudo vê e controla. Pelas ruas da cidade, cartazes lembram disso a toda hora: “O Grande Irmão está de olho em você!”. Dentro das casas, teletelas funcionam tanto como aparelhos de televisão quanto como câmeras de vigilância.
Há outros dois personagens: O’Brien, um agente do governo que se passa por membro da resistência, e Emmanuel Goldstein, um ex-membro do Partido que lidera a oposição. Segundo estudiosos, o Grande Irmão teria sido inspirado em Josef Stalin e Goldstein em Leon Trotsky.
“Não creio que o tipo de sociedade que descrevi vá necessariamente ocorrer”, declarou Orwell, em 1949, “mas estou convencido de que algo parecido poderia ocorrer”. E fez um importante alerta: “O totalitarismo, caso não seja combatido, pode triunfar por toda a parte”.
“Os livros de Orwell continuam populares porque ele considerava os regimes autoritários, de esquerda ou de direita, como um perigo em potencial”, afirma o professor universitário Richard Bradford, autor de Orwell – Um Homem do Nosso Tempo (Tordesilhas, 2020).
“Em A Revolução dos Bichos e 1984, dois de seus livros mais famosos, mostrou que tais regimes não teriam que ser necessariamente impostos à população. Se os cidadãos fossem manipulados com ‘duplipensamentos’, ou o que hoje é mais conhecido como ‘fake news’, eles apoiariam qualquer coisa. E Orwell estava certo”.
No ensaio Por que escrevo (1946), Orwell classificou o ato de escrever como “horrível” e “exaustivo”, e o comparou a “uma doença penosa”. No caso de 1984, levou três anos para concluir o livro.
Entre outras influências, citava a obra de H.G. Wells, autor de clássicos da ficção-científica como A Máquina do Tempo (1895), O Homem Invisível (1897) e A Guerra dos Mundos (1898), e o livro Nós (1920), do escritor russo Ievguêni Zamiátin.
Boa parte de 1984 foi escrito na ilha de Jura, na Escócia, numa propriedade rural chamada Barnhill. O vilarejo mais próximo, Ardlussa, ficava a onze quilômetros de distância.
Na fazenda, Orwell criou galinhas, plantou hortaliças e caçou coelhos. Por vezes, precisou interromper seu trabalho para cuidar da saúde. Tinha surtos de febre e acessos de tosse. Certa vez, chegou a ser internado no Hospital Hairmyres, perto de Glasgow. “Tudo aqui floresce. Menos eu”, queixou-se ao deixar a ilha, pela última vez, em 9 de janeiro de 1949.
Como todo escritor, também tinha suas manias. Uma delas era reescrever incontáveis vezes os parágrafos. De tantas emendas e correções, as páginas ficavam simplesmente ilegíveis.
A primeira frase de 1984, por exemplo, passou por diversas versões. Começou como “Era um dia frio e ventoso no começo de abril, e num milhão de rádios soavam as 13 horas”, e terminou como “Era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam 13 horas”.
Quando foi hospitalizado, deixou ordens claras para que, caso morresse, seu manuscrito fosse destruído.
Foi do leito de um hospital, o Sanatório Cranham, em Cotswolds, na Inglaterra, que Orwell, a pedido de Warburg, ditou, em 15 de junho de 1949, um breve comunicado à imprensa: “A moral a ser tirada dessa perigosa situação de pesadelo é simples: Não deixe isso acontecer. Depende de você”.
Embora não gostasse muito de 1984, Orwell escreveu para o escritor e roteirista Sidney Sheldon, perguntando a ele se não gostaria de adaptá-lo para o teatro. Não deu em nada.
Vítima de tuberculose, George Orwell morreu em 21 de janeiro de 1950, aos 46 anos, apenas sete meses depois do lançamento de 1984. Não viveu o suficiente para assistir à primeira versão audiovisual da obra. Foi ao ar no dia 12 de dezembro de 1954.
No filme escrito por Nigel Kneale e dirigido por Rudolph Cartier, Winston Smith foi interpretado por Peter Cushing.
Os telespectadores não gostaram do que viram. E telefonaram, indignados, para a rede britânica BBC. “Se é assim que vai ser o futuro, prefiro enfiar minha cabeça no forno a gás”, reclamou um. “Foi tão horrível que estive a ponto de quebrar o aparelho de televisão com um martelo”, esbravejou outro.
Não satisfeitos, ligaram, também, para a casa de George Orwell. Só não sabiam que o Orwell que constava da lista telefônica não era o original e, sim, um homônimo. Cansada de atender a tantos telefonemas raivosos, sua mulher, Elizabeth, fez um apelo desesperado ao jornal Daily Mirror: “Por favor, digam às pessoas que o meu marido NÃO é o autor dessa peça de TV”.
Apenas dois anos depois, Michael Anderson adaptou o livro para o cinema. Dessa vez, o protagonista foi vivido por Edmond O’Brien.
A versão mais famosa de 1984 talvez seja a de 1984, dirigida por Michael Radford e estrelada por John Hurt. A trilha-sonora foi assinada pela dupla Annie Lennox e Dave Stewart, do Eurythmics. Destaque para a faixa Sex Crime (Nineteen Eighty-Four).
Na música, assim como no cinema, 1984 inspirou outros artistas: do cantor David Bowie, que praticamente dedicou um disco inteiro ao livro, Diamond Dogs (1974), à banda Radiohead, que abriu o álbum Hail to the Thief (2003) com a música 2+2=5. No caso do roqueiro inglês, a ideia original era fazer um musical, mas a viúva de Orwell, Sônia, não autorizou.
No Brasil, a canção Como Dois e Dois, composta por Caetano Veloso e gravada por Roberto Carlos, faz referência a um trecho do livro: “No fim, o partido haveria de anunciar que dois mais dois são cinco, e você seria obrigado a acreditar”. No refrão da música, a letra diz: “Meu amor / Tudo em volta está deserto, tudo certo / Tudo certo como dois e dois são cinco”. A música foi lançada em 1971, em plena ditadura militar.
“Graças a Orwell, o grande público teve acesso a conceitos como ‘Grande Irmão’, a encarnação dos mecanismos da sociedade de controle, ou ‘novafala’, que denuncia os eufemismos e as distorções do discurso político, e tantos outros a que, ainda hoje, recorremos para entender a realidade à nossa volta”, analisa a escritora Jacinta Maria Matos, autora de George Orwell – Biografia Intelectual de Um Guerrilheiro Indesejado (Edições 70, 2019).
“Em suma: Orwell conseguiu pôr em prática um dos seus grandes desideratos como escritor: criar um espaço de discussão pública e democrática sobre algumas das questões essenciais da nossa sociedade”.
Ao longo das décadas, 1984 se consolidou como uma das obras mais influentes do século 20. De livros, como O Conto da Aia (1985), da escritora canadense Margaret Atwood, a séries de TV, como Black Mirror (2011), do roteirista inglês Charlie Brooker. De HQs, como V de Vingança (1997), do quadrinista britânico Alan Moore, a reality shows, como Big Brother (1999), do produtor holandês John de Mol.
Autor de Laranja Mecânica (1962), o escritor britânico Anthony Burgess chamou 1984 de “código apocalíptico dos nossos piores medos”.
No Brasil, 1984 inspirou história em quadrinhos, ilustrada pelo desenhista Fido Nesti, ganhador do Prêmio Eisner de melhor adaptação, e virou peça de teatro, encenada por Zé Henrique de Paula a partir da adaptação de Duncan MacMillan e Robert Icke. Na montagem, Winston Smith é interpretado por Rodrigo Caetano.
“Clássico é aquela obra que nunca pára de dizer o que tem a dizer. E o romance 1984 traz um verdadeiro compêndio de temas que nos interessam ainda hoje”, afirma o diretor Zé Henrique de Paula.
“É como se Orwell tivesse captado o zeitgeist (‘o espírito da época’) do pós-guerra e dos primeiros passos da Guerra Fria, mas, ao mesmo tempo, tivesse conseguido acertar um tiro de longa distância no zeitgeist dos nossos dias: uma sociedade mergulhada na vigilância do indivíduo e na perda de privacidade, manipulação midiática e pós-verdade, governos autoritários, alienação e imbecilização sociais. A lista de paralelos é extensa, mas só os exemplos acima já dão uma ideia da importância de Orwell”.
O protagonista da história, um funcionário público chamado Winston Smith, vive na Oceânia, o maior dos três. Compreende o Reino Unido, a América, a Oceania, grande parte do sul da África e dois países da Europa: Islândia e Irlanda.
Já a Eurásia abrange toda a Europa (exceto Reino Unido, Islândia e Irlanda), quase toda a Rússia e pequena parte da Ásia. A Lestásia engloba boa parte da Ásia, como China, Japão e Coreia, parte da Índia e algumas nações vizinhas.
Winston Smith, de 39 anos, vive em Londres, a capital da Pista de Pouso Um, anteriormente conhecida como Grã-Bretanha. Trabalha em um dos quatro ministérios: o da Verdade, no Departamento de Documentação. Na fachada do edifício, os lemas do Partido: “Guerra é Paz”, “Liberdade é Escravidão” e “Ignorância é Força”.
Seu trabalho é reescrever a história segundo a versão oficial do Partido. Para tanto, falsifica documentos. “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”, diz um trecho da obra.
Os outros três ministérios são: da Paz, do Amor e da Fartura. O primeiro supervisiona a guerra, o segundo espiona os cidadãos e o terceiro controla a economia.
Ao longo da história, Winston Smith comete pelo menos dois delitos graves: escreve um diário e se apaixona por Júlia, uma colega de trabalho. Certo dia, a funcionária do Departamento de Ficção entrega a Winston um bilhete com uma mensagem subversiva: “Eu te amo”. Sim, pensar e amar são crimes em Oceânia. Juntos, Winston e Júlia planejam ingressar num movimento clandestino de resistência, a Confraria.
Quem governa a Oceânia é o líder do Partido, o Grande Irmão, que tudo vê e controla. Pelas ruas da cidade, cartazes lembram disso a toda hora: “O Grande Irmão está de olho em você!”. Dentro das casas, teletelas funcionam tanto como aparelhos de televisão quanto como câmeras de vigilância.
Há outros dois personagens: O’Brien, um agente do governo que se passa por membro da resistência, e Emmanuel Goldstein, um ex-membro do Partido que lidera a oposição. Segundo estudiosos, o Grande Irmão teria sido inspirado em Josef Stalin e Goldstein em Leon Trotsky.
“Não creio que o tipo de sociedade que descrevi vá necessariamente ocorrer”, declarou Orwell, em 1949, “mas estou convencido de que algo parecido poderia ocorrer”. E fez um importante alerta: “O totalitarismo, caso não seja combatido, pode triunfar por toda a parte”.
“Os livros de Orwell continuam populares porque ele considerava os regimes autoritários, de esquerda ou de direita, como um perigo em potencial”, afirma o professor universitário Richard Bradford, autor de Orwell – Um Homem do Nosso Tempo (Tordesilhas, 2020).
“Em A Revolução dos Bichos e 1984, dois de seus livros mais famosos, mostrou que tais regimes não teriam que ser necessariamente impostos à população. Se os cidadãos fossem manipulados com ‘duplipensamentos’, ou o que hoje é mais conhecido como ‘fake news’, eles apoiariam qualquer coisa. E Orwell estava certo”.
No ensaio Por que escrevo (1946), Orwell classificou o ato de escrever como “horrível” e “exaustivo”, e o comparou a “uma doença penosa”. No caso de 1984, levou três anos para concluir o livro.
Entre outras influências, citava a obra de H.G. Wells, autor de clássicos da ficção-científica como A Máquina do Tempo (1895), O Homem Invisível (1897) e A Guerra dos Mundos (1898), e o livro Nós (1920), do escritor russo Ievguêni Zamiátin.
Boa parte de 1984 foi escrito na ilha de Jura, na Escócia, numa propriedade rural chamada Barnhill. O vilarejo mais próximo, Ardlussa, ficava a onze quilômetros de distância.
Na fazenda, Orwell criou galinhas, plantou hortaliças e caçou coelhos. Por vezes, precisou interromper seu trabalho para cuidar da saúde. Tinha surtos de febre e acessos de tosse. Certa vez, chegou a ser internado no Hospital Hairmyres, perto de Glasgow. “Tudo aqui floresce. Menos eu”, queixou-se ao deixar a ilha, pela última vez, em 9 de janeiro de 1949.
Como todo escritor, também tinha suas manias. Uma delas era reescrever incontáveis vezes os parágrafos. De tantas emendas e correções, as páginas ficavam simplesmente ilegíveis.
A primeira frase de 1984, por exemplo, passou por diversas versões. Começou como “Era um dia frio e ventoso no começo de abril, e num milhão de rádios soavam as 13 horas”, e terminou como “Era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam 13 horas”.
Quando foi hospitalizado, deixou ordens claras para que, caso morresse, seu manuscrito fosse destruído.
Foi do leito de um hospital, o Sanatório Cranham, em Cotswolds, na Inglaterra, que Orwell, a pedido de Warburg, ditou, em 15 de junho de 1949, um breve comunicado à imprensa: “A moral a ser tirada dessa perigosa situação de pesadelo é simples: Não deixe isso acontecer. Depende de você”.
Embora não gostasse muito de 1984, Orwell escreveu para o escritor e roteirista Sidney Sheldon, perguntando a ele se não gostaria de adaptá-lo para o teatro. Não deu em nada.
Vítima de tuberculose, George Orwell morreu em 21 de janeiro de 1950, aos 46 anos, apenas sete meses depois do lançamento de 1984. Não viveu o suficiente para assistir à primeira versão audiovisual da obra. Foi ao ar no dia 12 de dezembro de 1954.
No filme escrito por Nigel Kneale e dirigido por Rudolph Cartier, Winston Smith foi interpretado por Peter Cushing.
Os telespectadores não gostaram do que viram. E telefonaram, indignados, para a rede britânica BBC. “Se é assim que vai ser o futuro, prefiro enfiar minha cabeça no forno a gás”, reclamou um. “Foi tão horrível que estive a ponto de quebrar o aparelho de televisão com um martelo”, esbravejou outro.
Não satisfeitos, ligaram, também, para a casa de George Orwell. Só não sabiam que o Orwell que constava da lista telefônica não era o original e, sim, um homônimo. Cansada de atender a tantos telefonemas raivosos, sua mulher, Elizabeth, fez um apelo desesperado ao jornal Daily Mirror: “Por favor, digam às pessoas que o meu marido NÃO é o autor dessa peça de TV”.
Apenas dois anos depois, Michael Anderson adaptou o livro para o cinema. Dessa vez, o protagonista foi vivido por Edmond O’Brien.
A versão mais famosa de 1984 talvez seja a de 1984, dirigida por Michael Radford e estrelada por John Hurt. A trilha-sonora foi assinada pela dupla Annie Lennox e Dave Stewart, do Eurythmics. Destaque para a faixa Sex Crime (Nineteen Eighty-Four).
Na música, assim como no cinema, 1984 inspirou outros artistas: do cantor David Bowie, que praticamente dedicou um disco inteiro ao livro, Diamond Dogs (1974), à banda Radiohead, que abriu o álbum Hail to the Thief (2003) com a música 2+2=5. No caso do roqueiro inglês, a ideia original era fazer um musical, mas a viúva de Orwell, Sônia, não autorizou.
No Brasil, a canção Como Dois e Dois, composta por Caetano Veloso e gravada por Roberto Carlos, faz referência a um trecho do livro: “No fim, o partido haveria de anunciar que dois mais dois são cinco, e você seria obrigado a acreditar”. No refrão da música, a letra diz: “Meu amor / Tudo em volta está deserto, tudo certo / Tudo certo como dois e dois são cinco”. A música foi lançada em 1971, em plena ditadura militar.
“Graças a Orwell, o grande público teve acesso a conceitos como ‘Grande Irmão’, a encarnação dos mecanismos da sociedade de controle, ou ‘novafala’, que denuncia os eufemismos e as distorções do discurso político, e tantos outros a que, ainda hoje, recorremos para entender a realidade à nossa volta”, analisa a escritora Jacinta Maria Matos, autora de George Orwell – Biografia Intelectual de Um Guerrilheiro Indesejado (Edições 70, 2019).
“Em suma: Orwell conseguiu pôr em prática um dos seus grandes desideratos como escritor: criar um espaço de discussão pública e democrática sobre algumas das questões essenciais da nossa sociedade”.
Ao longo das décadas, 1984 se consolidou como uma das obras mais influentes do século 20. De livros, como O Conto da Aia (1985), da escritora canadense Margaret Atwood, a séries de TV, como Black Mirror (2011), do roteirista inglês Charlie Brooker. De HQs, como V de Vingança (1997), do quadrinista britânico Alan Moore, a reality shows, como Big Brother (1999), do produtor holandês John de Mol.
Autor de Laranja Mecânica (1962), o escritor britânico Anthony Burgess chamou 1984 de “código apocalíptico dos nossos piores medos”.
No Brasil, 1984 inspirou história em quadrinhos, ilustrada pelo desenhista Fido Nesti, ganhador do Prêmio Eisner de melhor adaptação, e virou peça de teatro, encenada por Zé Henrique de Paula a partir da adaptação de Duncan MacMillan e Robert Icke. Na montagem, Winston Smith é interpretado por Rodrigo Caetano.
“Clássico é aquela obra que nunca pára de dizer o que tem a dizer. E o romance 1984 traz um verdadeiro compêndio de temas que nos interessam ainda hoje”, afirma o diretor Zé Henrique de Paula.
“É como se Orwell tivesse captado o zeitgeist (‘o espírito da época’) do pós-guerra e dos primeiros passos da Guerra Fria, mas, ao mesmo tempo, tivesse conseguido acertar um tiro de longa distância no zeitgeist dos nossos dias: uma sociedade mergulhada na vigilância do indivíduo e na perda de privacidade, manipulação midiática e pós-verdade, governos autoritários, alienação e imbecilização sociais. A lista de paralelos é extensa, mas só os exemplos acima já dão uma ideia da importância de Orwell”.
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