sábado, junho 3

O guardador de tias

Sou o filho mais velho de dois filhos mais velhos, quando nasci os meus avós, de um lado e do outro, tinham entre quarenta 
e oito e cinquenta e três anos, ou seja eram muito novos embora eu os achasse velhíssimos, e quer a minha mãe quer o meu pai tinham bastantes irmãos, com os mais novos ainda adolescentes. O meu pai, por exemplo, possuía um rebanho de manas, Tia Madalena, Tia Gógó, Tia Bia, Tia Graça, a Tia Madalena casada, as outras não. As não casadas namoravam às vezes, com sujeitos com quem eu embirrava sempre, cheio de ciúmes. Os sujeitos com quem eu embirrava sempre, cheio de ciúmes, a partir de certa altura começavam a entrar em casa dos meus avós

(para os meus avós era melhor ter o inimigo por 
perto)

cheios de cerimónias e educações, e a minha avó consentia que eles conversassem no andar de cima com as minhas tias, onde havia um sofá com uma 
cadeira em frente. Elas e os ditos sujeitos sentavam-se no sofá, a minha avó chamava-me

– Toino

levantava-me para me sentar na cadeira em frente deles, depois de me dizer, num tom de brincadeira que não era brincadeira

– Ficas aqui a tomar conta da tua tia

e eu, a baloiçar as pernas que não chegavam ao tapete, fixava os olhos nos deles numa silenciosa ferocidade de buldogue. Se por acaso um dos namorados tocava com a ponta dos dedos na mão de uma das minhas tias, eu berrava de imediato

– Avó

a minha avó aparecia passados segundos

– O que se passa, querido?

enquanto o namorado se encolhia em pânico no seu lado do sofá 
e a tia me jurava pela alma com olhos assassinos. Eu fazia então o meu 
relatório escrupuloso

– Ele tocou-lhe na mão

a minha avó indignava-se

– Com franqueza, Graça

(ou Bia ou Gógó)

o namorado garantia, a tropeçar nas palavras

– Por acaso nem lhe toquei Senhora Dona Eva

Susa Monteiro

a minha avó tomava de imediato a minha defesa

– O meu neto nunca mente

e afastava-se de novo com um

– Que isto não se repita

declarado em tom sangrento porque a minha avó, com todo o seu sangue alemão à tona, era terrível. 
Seguiam-se uns minutos de paz, eles furiosos comigo e eu vitorioso, a estudar-lhes os manejos pronto a um novo alerta, enquanto eles se fitavam com a gana de me estrangularem estampada

(é a palavra certa)

na cara. Às vezes um pretendente, que se julgava mais vivaço do que eu

(ninguém era mais vivaço do que eu)

puxava o porta-moedas do bolso, puxava do porta-moedas uma moeda apetitosa, propunha-me

– Não queres ir comprar uns rebuçados à pastelaria do outro lado da rua?

eu metia a moeda no bolso

– Quando você sair daqui vou lá

e continuava a minha feroz actividade de guardião da pureza familiar. A minha tia tentava ajudar o milionário

– Há lá umas pastilhas de mentol óptimas

enquanto me piscava um olho cúmplice a mim e um segundo olho, apaixonado, ao pretendente, eu, inabalável, chamava de novo

– Avó

a minha avó, já menos paciente

– O que é agora menino?

comigo a mostrar-lhe a moeda

– Esse aí quer que eu vá ao 
Paraíso comprar pastilhas

a minha avó a olhar para mim

– Comprar pastilhas?

a minha avó a olhar para o 
homem

– Não tem vergonha de tentar subornar uma criança?

a reflectir melhor

– Bia

(ou Graça ou Gógó)

– Já para o seu quarto

a minha tia, ao sair, tentava um beliscão na minha orelha que falhava o alvo, a minha avó para o capitalista que se fundia no sofá

– E o senhor rua

enquanto se escutavam os soluços da minha tia e a minha avó, com uma festinha no meu queixo

– Vou dar-te outra moeda porque és um neto como deve ser. E era de facto um neto como deve ser, um pilar essencial para a honra da instituição familiar, um impecável guardião da Virtude. As minhas tias, de actividade cerebral lenta, percebiam passada uma semana o meu amor à Castidade e tornavam a tratar-me com a ternura que eu merecia. No fim de contas era o sobrinho favorito delas

(o João era ainda pequeno e o Pedro não passava 
de um projecto na barriga da nossa mãe)

e elas adoravam comer-me as bochechas e o lóbulo da orelha, enchendo-me de cuspo que eu limpava na manga, mas sem nos sentarmos nunca no sofá. A cadeira ainda lá deve estar, com um miúdo loiro empoleirado no assento que nunca fez queixa de mim.

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