(para os meus avós era melhor ter o inimigo por perto)
cheios de cerimónias e educações, e a minha avó consentia que eles conversassem no andar de cima com as minhas tias, onde havia um sofá com uma cadeira em frente. Elas e os ditos sujeitos sentavam-se no sofá, a minha avó chamava-me
– Toino
levantava-me para me sentar na cadeira em frente deles, depois de me dizer, num tom de brincadeira que não era brincadeira
– Ficas aqui a tomar conta da tua tia
e eu, a baloiçar as pernas que não chegavam ao tapete, fixava os olhos nos deles numa silenciosa ferocidade de buldogue. Se por acaso um dos namorados tocava com a ponta dos dedos na mão de uma das minhas tias, eu berrava de imediato
– Avó
a minha avó aparecia passados segundos
– O que se passa, querido?
enquanto o namorado se encolhia em pânico no seu lado do sofá e a tia me jurava pela alma com olhos assassinos. Eu fazia então o meu relatório escrupuloso
– Ele tocou-lhe na mão
a minha avó indignava-se
– Com franqueza, Graça
(ou Bia ou Gógó)
o namorado garantia, a tropeçar nas palavras
– Por acaso nem lhe toquei Senhora Dona Eva
Susa Monteiro |
a minha avó tomava de imediato a minha defesa
– O meu neto nunca mente
e afastava-se de novo com um
– Que isto não se repita
declarado em tom sangrento porque a minha avó, com todo o seu sangue alemão à tona, era terrível. Seguiam-se uns minutos de paz, eles furiosos comigo e eu vitorioso, a estudar-lhes os manejos pronto a um novo alerta, enquanto eles se fitavam com a gana de me estrangularem estampada
(é a palavra certa)
na cara. Às vezes um pretendente, que se julgava mais vivaço do que eu
(ninguém era mais vivaço do que eu)
puxava o porta-moedas do bolso, puxava do porta-moedas uma moeda apetitosa, propunha-me
– Não queres ir comprar uns rebuçados à pastelaria do outro lado da rua?
eu metia a moeda no bolso
– Quando você sair daqui vou lá
e continuava a minha feroz actividade de guardião da pureza familiar. A minha tia tentava ajudar o milionário
– Há lá umas pastilhas de mentol óptimas
enquanto me piscava um olho cúmplice a mim e um segundo olho, apaixonado, ao pretendente, eu, inabalável, chamava de novo
– Avó
a minha avó, já menos paciente
– O que é agora menino?
comigo a mostrar-lhe a moeda
– Esse aí quer que eu vá ao Paraíso comprar pastilhas
a minha avó a olhar para mim
– Comprar pastilhas?
a minha avó a olhar para o homem
– Não tem vergonha de tentar subornar uma criança?
a reflectir melhor
– Bia
(ou Graça ou Gógó)
– Já para o seu quarto
a minha tia, ao sair, tentava um beliscão na minha orelha que falhava o alvo, a minha avó para o capitalista que se fundia no sofá
– E o senhor rua
enquanto se escutavam os soluços da minha tia e a minha avó, com uma festinha no meu queixo
– Vou dar-te outra moeda porque és um neto como deve ser. E era de facto um neto como deve ser, um pilar essencial para a honra da instituição familiar, um impecável guardião da Virtude. As minhas tias, de actividade cerebral lenta, percebiam passada uma semana o meu amor à Castidade e tornavam a tratar-me com a ternura que eu merecia. No fim de contas era o sobrinho favorito delas
(o João era ainda pequeno e o Pedro não passava de um projecto na barriga da nossa mãe)
e elas adoravam comer-me as bochechas e o lóbulo da orelha, enchendo-me de cuspo que eu limpava na manga, mas sem nos sentarmos nunca no sofá. A cadeira ainda lá deve estar, com um miúdo loiro empoleirado no assento que nunca fez queixa de mim.
– O meu neto nunca mente
e afastava-se de novo com um
– Que isto não se repita
declarado em tom sangrento porque a minha avó, com todo o seu sangue alemão à tona, era terrível. Seguiam-se uns minutos de paz, eles furiosos comigo e eu vitorioso, a estudar-lhes os manejos pronto a um novo alerta, enquanto eles se fitavam com a gana de me estrangularem estampada
(é a palavra certa)
na cara. Às vezes um pretendente, que se julgava mais vivaço do que eu
(ninguém era mais vivaço do que eu)
puxava o porta-moedas do bolso, puxava do porta-moedas uma moeda apetitosa, propunha-me
– Não queres ir comprar uns rebuçados à pastelaria do outro lado da rua?
eu metia a moeda no bolso
– Quando você sair daqui vou lá
e continuava a minha feroz actividade de guardião da pureza familiar. A minha tia tentava ajudar o milionário
– Há lá umas pastilhas de mentol óptimas
enquanto me piscava um olho cúmplice a mim e um segundo olho, apaixonado, ao pretendente, eu, inabalável, chamava de novo
– Avó
a minha avó, já menos paciente
– O que é agora menino?
comigo a mostrar-lhe a moeda
– Esse aí quer que eu vá ao Paraíso comprar pastilhas
a minha avó a olhar para mim
– Comprar pastilhas?
a minha avó a olhar para o homem
– Não tem vergonha de tentar subornar uma criança?
a reflectir melhor
– Bia
(ou Graça ou Gógó)
– Já para o seu quarto
a minha tia, ao sair, tentava um beliscão na minha orelha que falhava o alvo, a minha avó para o capitalista que se fundia no sofá
– E o senhor rua
enquanto se escutavam os soluços da minha tia e a minha avó, com uma festinha no meu queixo
– Vou dar-te outra moeda porque és um neto como deve ser. E era de facto um neto como deve ser, um pilar essencial para a honra da instituição familiar, um impecável guardião da Virtude. As minhas tias, de actividade cerebral lenta, percebiam passada uma semana o meu amor à Castidade e tornavam a tratar-me com a ternura que eu merecia. No fim de contas era o sobrinho favorito delas
(o João era ainda pequeno e o Pedro não passava de um projecto na barriga da nossa mãe)
e elas adoravam comer-me as bochechas e o lóbulo da orelha, enchendo-me de cuspo que eu limpava na manga, mas sem nos sentarmos nunca no sofá. A cadeira ainda lá deve estar, com um miúdo loiro empoleirado no assento que nunca fez queixa de mim.
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