quarta-feira, junho 7

Jardim fechado

Atrás de grade — os varões sumidos pela roseira-branca da qual os galhos, de lenho, em jeito espesso se torciam e trançavam — começava outro espaço. Dele, a primeira presença dando-se no cheiro, mistura de muitos. De maior lembrança, quando se juntavam: o das rosas-chá; o da flor-do-imperador, de todos o mais grato; o do manacá, que fragra vago a limão; o dos guaimbés, apenas de tardinha saído a evolar-se; e, maravilha, delas só, o das dracenas. Era um grande jardim abandonado. Seu fundo vinha com as árvores. Seu fim, o muro, musgoengo.

Sem gente, virara-se em matagalzinho, sílvula, pequena brenha. À expansa, nos canteiros, surgiam bruscas espécies, viajadas no ar: a daninha formosa, a meiga praga, a rastejante viçosíssima, os capins que entrementes pululam. As próprias nobres plantas, de antes, desdormiam e deslavavam-se, ameaçadas em sua fresca debilidade. Afolham, regredidas, desmedidas, fecham-se em tufos. Do verde-mais-verde ou do verde-negro, adivinham-se obscuras clareiras, recessos onde as borboletas vão-se. Murcha-se muito, lá. Mesmo as rosas demoradas, que em seus ramos mofam ou enferrujam, enroladas às vezes em teias de aranhas. No liso, nas alamedas, empilham-se as folhas ressecas. Há flores prósperas, as que ensaiam voo: o ouro faisão, traje o roxo e azul, a amiga alvura, o vermelho de doer na cor; lambe-as a desenhadora lesma. Há-as poentas de açúcar. Ou as amarelinhas que abrolham à tona do chão, florinhas questiúnculas. Sempre passeiam, ao rés-da-terra ou em relva, uns pequeninos entes: o tatuzinho que se embola, a escolopendra, os mínimos caramujos de casca tão frágil — o caracolzinho quadricórnio. A abelha faz e passa. E — o besouro — pronto. Ver a vespa, aventureira. Sobe, dos entreverdes, uma lenda sem lábios. Tudo fogoso e ruiniforme: do que nas ruínas é repouso, mas sem seu selo de alguma morte. Antes a vida, ávida. A vida — o verde. Verdeja e vive até o ar, que o colibri chamusca. O mais é a mágica tranquilação, mansão de mistério. Estância de doçura e de desordem.


O menino se escondia lá, fugido da escola. Subia a uma árvore: no alto, os pensamentos passavam como o vento. Aprendia a durar quieto, ia ficando sonâmbulo. O jardim — quase um oceano. A verdidão arregalava olhos e aves. As outras árvores no enorme crescer: o inconscienciocioso. Aí, um passarinho principiava. Cantava a cigarra Zizi. As cigarras do meio-dia. A borboleta ia passando manteiga no ar. A borboleta — de upa, upa, flor. E... tililique... um pássaro, vindo dos voos. O passarinho, que perto pousava, levava no bico um fio de cabelo, o de uma menininha, muito loura.

Surpreendeu-se, com um de repente companheiro. O gato. Chegara-se, em sua grossa maciez. Pulara de galho a galho, com o desvencilho de todo peso. O gato, rajado, grande: o mesmo, da casa do Avô. Seguira-o, ou costumava vir, por si? O gato era à parte, legítimo da casa, pegador de ratos, talvez; em horas quietas, subia à pia da cozinha, e sabia abrir ele mesmo a torneira, para beber sua sede de água. Respeitavam-no. Mas ninguém atentava nele, não se importavam com sua grave existência. Agora, parava ali: com o ato de correr os olhos sobre outros olhos. A gente tinha de sabê-lo. Era preciso pôr-lhe um nome qualquer? Chamasse-o de: Rigoletto. Mas o gato resistiu, o nome caiu no chão, não pegado, como um papel.

Com o que, ouviu uma voz, a vozinha de detrás da orelha: — “Psiu! Não lhe dê nome. Sem nome, você poderá sentir, sempre mais, quem ele é...” E o menino se assombrou, aquela só voz rompera a película de sossego. Olhou: viu nada. Tanto o gato, lhe em frente, a cofiar-se, calmo, sem fazer fu, sem espirrar contra o demônio. A voz — vozinha firme e velha — ninguém a tinha falado? O menino desquis de pensar. Aquele jardim tinha recatos. Sim, não ia botar nome, nenhum. Gostava do gato, que, sussurronando — suas pupilas em quarto minguante — olhava-o, exato. Lembrou-se, só então — como podia ter esquecido o ponto? — de que fora ele, o gato, próprio, quem lhe ensinara por primeira vez o caminho e a entrada do jardim. Seguindo o seguir do gato, fora que ele dera com o estado do lugar. O gato era forte amigo. Mas, quisesse, não quisesse, o menino se estava debaixo do pensamento: ali, no jardim, faziam-se espantos. O mexer de um misterioso. Ali, havia alguém! E o menino tinha de se propor agora as lembranças todas juntas, de coisas, de em diversos dias, sem explicação de acontecer.

Primeiro, ele tinha perdido o argolão pequeno, dourado, de que gostava tanto, o que dava para chorar; procurava, não achava, perder o argolão era a desgraça. Mas, aí, quando já estava considerado desistido, avistara: na alameda, um comprido rastro marcado, todo de sementes de magnólia, e ia dando voltas, do jeito de alguém estar querendo ensinar um caminho — feito o pingado de pedrinhas na estória de Joãozinho e Maria. Veio acompanhando aquilo e, no fim, deu com o argolão, ao pé das bocas-de-lobo. Depois, a vez em que ia pondo mão em galho, quando, em cima de lá, se pulou um clarãozinho, alumiado com estalo, de aviso, feito o se acender de um isqueiro. Foi, cauteloso, então, espiou: justo ali rojava uma tatarana, a ruiva lagarta, horripilífera, que sapeca feito fogo, só de nela ao de leve se tocar. Depois, dia outro, se admirara, de ver: os bichinhos todos para um canto revoarem — borboletas, besouros, marimbondos, moscardões, libélulas — que em roda se ajuntavam, em ar, em folhagens ou no chão: pareciam obedecendo, reunidos, ao ensino de algum chamamento. Agora, a voz, que aconselhava.

O menino espaireceu o medo. Saía para tirar o segredo. Ia remexer o jardim todo. Veio-se andando, revistando. O grande gato o acompanhava. Sete vezes. Nada achado! Nem em tronco e nem em fronde, nem na sombra sibilando, em moita nem desmoitado. Mesmo nem em cova de grilo, buraco de escaravelho. Não havia o quem que fosse, mas havia o por se achar. O jardim se encapuzava. Os bichinhos distraídos e as flores em o pendurar-se. A rosa intrêmula, doidivana a dália, em má-arte a aranha, o quente cravo; borboletas muito a amarem-se; bobazinhas violetas, os lírios desnatados. Ninguém soubesse de nada. Só a soledade. O menino se deitou com a cabeça. Quieto, também, o gato. Um para o outro olhavam. Oscilavam os amores-perfeitos, com seus bonequinhos pintados. O menino, já de novo, se ensimesmitava. O gato, às suas barbas. E, nisso, o menino, pasmo: via o quê, no olho do gato. Um homem! — seu retrato, pupilado. O menino se voltou: nada de nada. Então, porém, um bem-te-vi cantou, ípsis-vérbis. E havia o homem, num ramo de jasmim-do-cabo... Do tamanhinho de um dedo, o homenzinho de nada. O assombro. O menino se arregalava. Era um Pequeno-Mindinho? Tinha barba. Tinha roupa? Vestido à mágica. No meio do estupefazer, todinho ele se alumiava.

— “Tulipas! Este pássaro delator...” — curvando-se, petulou, saudava. O gato, nem passo. O menino disse: — “Como você chama?” — gago. — “Te disse: não me dê nome...” — retrucou o fantasmago. — “Ou, então, dê-me os muitos nomes: Mirlygus, Mestrim, Mistryl, Mirilygus. Sou o teu amigo.” O menino estendeu a mão. — “Não me toque, cidadão, que há que eu sou do outro lado...” — avisou o ente duende. E: — “Tulipas!” — de novo exclamou. — “O senhor é daqui?” — o menino fez pergunta. — “Não há lugares: há um só, eu venho de toda a parte. Venho das ab-origens. Você também...” — e parecia com um alto-falante, pois tão claro vozeava. O gato agora com todo o rosto mirava, se acentuando seu leonino.

O menino sacudiu a cabeça, em alguma muita coisa ele nem acreditava. — “Que é que o senhor faz?” — Ele mesmo assim quis saber. Mirilygus, fulgifronte, sorriu em centro de sua luz: — “Eu vivo de poesia.” O menino também sorriu. — Isto é: “de sabedoria...” — o tico de homem completou; só siso. — “O senhor é velho?” — quis mais saber o menino. — “Sou. Também você. Agora, você já é, o que vai ser no número de anos. Não há tempo, nenhum: só o futuro, perfeitíssimo...” ele disse, Mestrim, tão enxuto. Então o menino se encorajou: — “Meu senhor homúnculo... — falou (claro que com outras palavras) — ... este jardim é o meu?” E o figurim respondeu: — “Não. O seu virá, quando amar.” E o menino: — “Hem? Eu?” E o outro: — “Há flor sem amor?”

Daí, longo, disse e falou:

— “São muitos e milhões de jardins, e todos os jardins se falam. Os pássaros dos ventos do céu — constantes trazem recados. Você ainda não sabe. Sempre à beira do mais belo. Este é o Jardim de Evanira. Pode haver, no mesmo agora, outro, um grande jardim com meninas. Onde uma Meninazinha, banguelinha, brinca de se fazer de Fada... Um dia, você terá saudades, dos dentinhos, que nunca viu, que ela jogou no telhado. Vocês, então, saberão... Agora, me desapareço. Tanto já fui avistado! Nenhuma mal-me-querença? Mas, de outra vez, parlamenta-se. O resto, em dia mais bonito, contarei, depois e depois...”

Já aí se evanescia, aéreo como o roxo das glicínias, o mindinho Mirilygus.

O menino suspirou, viu-se triste, no após-paz. O gato deu um miado ao nada. Juntos, voltavam para casa.
Guimarães Rosa, "Ave, palavra"

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