Quero escrever um livro. Não penso em outra coisa. Li uma entrevista de um autor importante, não me lembro do nome, na qual ele dizia que sentava na frente do computador para escrever sem saber o quê, e à medida que escrevia, as ideias iam surgindo na sua cabeça, os personagens, a história, tudo. Se você quer escrever, aconselhava ele, comece — escrever é começar. Uma coisa simples, como todas as verdades. E a gente começa um livro dando-lhe um título, sem ele o livro não adquire o sopro inicial de vida necessário ao seu desenvolvimento, um livro é como uma pessoa, tem que ter logo um nome de batismo. Ontem comecei um livro, mas desisti. Fiquei horas na frente do papel, olhando para o título, e não saiu mais nada. Rasguei aquela folha e joguei no lixo. Hoje começo outro. Com título diferente, é claro, o primeiro abortou. Escrever é começar.
A VINGANÇA — “As pessoas que o conheciam não seriam capazes de imaginar que ele pudesse realizar alguma coisa grandiosa. Era um homem gordo e ninguém esperava que conseguisse aquela proeza admirável. Como não havia heróis gordos no cinema, na televisão e na História, eles também não podiam existir na vida real. Jesus era magro, o Demônio também era magro. Um Casanova gordo? Só se fosse um xeque. Sim, Buda era gordo, mas devia haver alguma misteriosa razão sanscrítica para ele ser representado por uma imagem pachorrenta, sempre sentada, enquanto os outros, os magros, estão de pé ou a cavalo. Os gordos são vistos como pessoas tolas que suam muito, que sobem escadas bufando exaustos, cuja nudez, quando não é repulsiva, é cômica. Os caricaturistas adoram os gordos. São ridicularizados, humilhados e ofendidos de todas as maneiras. Além de gordo, ele era pobre. Sim, ele era um gordo recalcado, se roendo de inveja e vergonha. Até que tramou a sua vingança, uma façanha assombrosa que lavaria a sua alma e a de todos os gordos do mundo.”
A VINGANÇA — “As pessoas que o conheciam não seriam capazes de imaginar que ele pudesse realizar alguma coisa grandiosa. Era um homem gordo e ninguém esperava que conseguisse aquela proeza admirável. Como não havia heróis gordos no cinema, na televisão e na História, eles também não podiam existir na vida real. Jesus era magro, o Demônio também era magro. Um Casanova gordo? Só se fosse um xeque. Sim, Buda era gordo, mas devia haver alguma misteriosa razão sanscrítica para ele ser representado por uma imagem pachorrenta, sempre sentada, enquanto os outros, os magros, estão de pé ou a cavalo. Os gordos são vistos como pessoas tolas que suam muito, que sobem escadas bufando exaustos, cuja nudez, quando não é repulsiva, é cômica. Os caricaturistas adoram os gordos. São ridicularizados, humilhados e ofendidos de todas as maneiras. Além de gordo, ele era pobre. Sim, ele era um gordo recalcado, se roendo de inveja e vergonha. Até que tramou a sua vingança, uma façanha assombrosa que lavaria a sua alma e a de todos os gordos do mundo.”
Uma merda, esse começo. Não consigo inventar uma boa história. Tenho um título e um começo, mas o resto? O começo até que é razoável, cria um certo suspense ao falar de vingança, de uma façanha assombrosa. O leitor certamente ficará interessado. Mas que façanha assombrosa é essa? Jogar uma bomba num local cheio de gente? Isso acontece todo dia em várias partes do mundo, o herói matando em nome de Deus, mas não quero escrever uma história sobre a Fé, nem sobre nenhum outro dogma religioso. O personagem é um grande bandido? Bandido gordo não é raro, mas os bandidos realmente importantes são magros. Tenho que mudar o começo. Primeiro, riscar a façanha assombrosa. Outra coisa, um ato que lave a alma dos gordos do mundo inteiro é impossível. Posso deixar o personagem tramando uma vingança que lave a sua alma singular, um sujeito gordo pode lavar a própria alma matando um magrela qualquer, mas isso é pouco. O escritor não deve criar expectativas que não podem ser preenchidas. Teve um desses caras cheios de livros publicados que, numa entrevista, os escritores adoram dar entrevistas, pontificou: ao escrever, livre-se da sua vidinha. Até que isso está bem bolado. Livre-se da sua vidinha. Então meu personagem vai deixar de ser gordo, ele é gordo porque eu sou gordo, vou livrar-me da minha vidinha. Mas tenho que saber sobre o que eu escrevo, porra, não é fácil a gente se livrar da nossa vidinha. Eu sei o que é ser gordo, devo então fingir que sou magro e atribuir ao meu personagem magro os meus ressentimentos de gordo? Provavelmente o leitor não perceberá isso, que o personagem magro é na verdade um gordo frustrado e humilhado. Bem, vou fazer esse sujeito magro matar alguém, de preferência um político odiado, um tubarão das finanças ou outro figurão qualquer, a morte de um sujeito poderoso causa comoção e desperta simpatia para o assassino, até mesmo na vida real. E o herói, que os leitores pensam ser magro, lava a sua alma de gordo ao cometer esse ato mortal. O problema é que essa história de atentado já foi muito usada, os humilhados do mundo sempre cometeram atentados, contra príncipes, políticos, multidões, causando guerras e comoções com esse gesto, mas alguém lembra o nome deles? Quem foi mesmo que matou o arquiduque Ferdinand? Quem foi mesmo que detonou aquela bomba que matou milhares naquela parte do mundo? Não posso escrever coisas que o tempo apaga. Sinto-me num beco sem saída, comecei mal. Está uma merda, esse começo. Mas são estes os assuntos que interessam ao leitor, sexo, morte e dinheiro, não posso me afastar disso. Vou fazer outro começo. Escrever é começar.
O HOMEM POR QUEM AS MULHERES ERAM LOUCAS — “Rodrigo era um homem comum, nem bonito nem feio, nem alto nem baixo, mas não precisava fazer coisa alguma para fazer as mulheres se apaixonarem por ele. Qualquer uma que conversasse com Rodrigo por mais de meia hora sentia-se inconscientemente excitada, um calor na pele, uma espécie de euforia na mente. E o assunto podia ser qualquer um, sobre crianças e empregadas, a tediosa e recorrente conversação feminina, ou sobre política ou economia, caso uma mulher se interessasse por isso. Em suma, qualquer coisa. Quanto mais tempo a mulher ficasse ao lado do nosso herói, mais se encantaria com ele, pois Rodrigo era um homem que amava intensamente o sexo feminino e as mulheres sentiam isso, como um gás inebriante, um feitiço, um sortilégio que as fascinava, seduzindo-as, contaminando-as, instigando-as a se entregarem a ele. As mulheres descobrem misteriosamente quando um homem é compulsivamente atraído pelo sexo feminino e respondem como mariposas atraídas pela luz. No início elas não entendiam o que estava acontecendo, mas, depois que se afastavam, Rodrigo permanecia em suas mentes. À noite, sonhavam com ele.”
Revejo esse começo, o começo exige atenção especial. Não gosto do nome do personagem, Rodrigo. É nome de novela de TV. E não posso comparar a mulher a uma mariposa, esse nome tem conotações negativas, as prostitutas eram chamadas, e ainda o são, de mariposas, e quando falo que as mulheres só gostam de falar sobre crianças e empregadas pareço um desses machistas que acham as mulheres inferiores, e mesmo se elas fossem inferiores, como atestam algumas opiniões filosóficas e científicas de peso, um escritor não pode dizer isso, perde os leitores femininos, e as mulheres podem não entender o que leem mas compram livros. E quando digo que o herói seduzia as mulheres contaminando-as, estou usando uma metáfora que pode parecer inadequada. Contaminar é contagiar, provocar uma infecção, corromper, viciar, era isso mesmo que eu queria dizer, mas todo cuidado é pouco com as metáforas. Mas esse começo também está uma merda, não sei o que vai acontecer depois, todas as ideias que galopam pelo meu pensamento deixam-me confuso. Fico horas na máquina de escrever, rasgo mil folhas de papel, mas não vou para a frente, fico atolado. Acho que vou comprar um computador. Dizem que isso ajuda. Escrever é começar.
O ARGENTÁRIO — “Era um banqueiro rico e poderoso, o dinheiro lhe dava autoridade, abria-lhe portas, conseguia-lhe mulheres e mesuras, e, quanto mais dinheiro possuía, maiores eram sua influência, prestígio e poder junto a seus pares e sobre a legião de subordinados que lhe prestava vassalagem. A ninguém interessava a maneira pela qual obtivera seus vastos recursos financeiros, parte deles certamente de maneira ilícita ou imoral, afinal ele era um banqueiro. O dinheiro dá uma aura de respeitabilidade, além de um irresistível charme, a ladrões, rufiões, putas, traficantes, assassinos, assaltantes, pedófilos, estelionatários e corruptos em geral.”
Esse começo não está uma merda tão grande quanto os outros, mas tenho algumas dúvidas. Misturar pedófilos e assassinos com putas, estelionatários e corruptos é meio arbitrário, não obstante a atração pelo dinheiro ter a mesma essência do pendor pela depravação. Além disso, falar mal de banqueiros é um clichê, até revistas chatas de economia fazem isso. Minha indecisão nada tem a ver com o fato de que estou devendo dinheiro ao banco, mesmo sendo um bom motivo para ir à forra dos juros escorchantes que me cobram. Não sei por que atribuí um irresistível charme ao banqueiro. Um banqueiro, mesmo que tenha um passado deslumbrante de fraudes, tramoias e trapaças, como a maioria, a partir do momento em que a máscara que usa é a de banqueiro e essa máscara vira a sua verdadeira face, como todas as máscaras que não se tiram do rosto, ele se torna um sujeito sem charme. Ladrões, assaltantes e assassinos podem, sim, ter charme para os leitores. Estou usando um computador, que comprei com dinheiro financiado por um banco, é claro, não tenho dinheiro sobrando, mas parece que o computador não está me ajudando tanto quanto eu pensava. Lendo novamente o parágrafo que começa a história do banqueiro, não tenho dúvidas de que está também uma droga. Vou abandonar esse começo, mas não desisto, escrever é começar. Agora estou mais motivado.
OS SERES HUMANOS NÃO MERECEM EXISTIR — “Gostava de matar baratas, pisando-as com a sola do sapato, mas um dia, depois de matar uma barata, o seu pensamento começou a vagar de maneira descontrolada e inquietante. Queria ser um escritor, ainda que soubesse que cada vez mais livros são publicados e menos livros são lidos, e que se conseguisse publicar um livro a crítica não tomaria conhecimento do seu trabalho, os críticos só se interessam pelos livros que vendem, por best-sellers cretinos. Mas não ia desistir do seu propósito, apesar da inquietação que se apoderou dele, do descontrole do seu pensamento, nesse dia em que matou a barata. Um escritor necessita de um certo domínio sobre seus pensamentos, deve possuir o poder de dirigi-los no sentido que desejar, e se isso não for totalmente possível o escritor não tem motivo para ficar preocupado, precisa apenas dar um certo método às suas divagações, mesmo se essas digressões o levem a se perguntar, por que mata apenas baratas? Por que não mata uma pessoa?”
Gosto deste novo começo. Não consigo acabar com as baratas que me perseguem, dedetizo periodicamente a minha casa mas elas sobem do apartamento de baixo, onde mora uma velha suja e petulante. Ontem ela disse, sai da minha frente, gordo molenga, quando me encontrou na escada. A velha desgraçada subia os degraus com mais rapidez do que eu. Dei passagem a ela sentindo vontade de agarrar o seu magro pescoço pelancudo e exterminar naquele momento a sua vida inútil. Odeio baratas e antes as matava pisando nelas, mas hoje vou matá-las com a minha mão, isso me dará uma satisfação especial, eu me vingo assim do nojo e do medo que me causam. Corro atrás da primeira barata que aparece na cozinha e achato-a com um golpe forte, sinto a barata estalando e enchendo de gosma fedorenta a palma da minha mão, que esfrego vitorioso no chão da cozinha. Meus pensamentos correm como ferozes tigres famintos perseguindo gazelas assustadas numa infindável pradaria. Não vou passar o resto dos meus dias matando baratas. Desço ao andar de baixo. Quando a velha abre a porta eu entro e a agarro pelo pescoço, esganando-a. Ainda não sei como dizer o que sinto. Pego alguns objetos na casa para parecer que a velha foi morta por um ladrão. Ao sair, deixo a porta aberta, um vizinho qualquer vai descobrir o corpo. Ninguém suspeitará de mim. Sou conhecido como um gordo manso e inofensivo.
Neste momento estou desenvolvendo o começo da história que iniciei com o título que lhe deu o sopro inicial de vida. No quiosque de livros da praça li um poema no qual o autor (roubei dele o título da minha história) diz que o mundo é doloroso, os seres humanos não merecem existir e ele, poeta, suspeita que a crueldade da sua imaginação está de certa forma conectada com seus impulsos criativos. Matar a velha, não a crueldade, como disse o poeta, mas a força do meu ato e não apenas da minha imaginação foi a impulsão que fará de mim um verdadeiro escritor. Livre-se da sua vidinha? O escritor não pode livrar-se da sua vida.
Escrever é começar. Tenho, agora, o começo, tenho o meio e o fim.
Rubem Fonseca, "Pequenas Criaturas"
Rubem Fonseca, "Pequenas Criaturas"
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