Nossa viagem bem que pode começar pelo relógio de sol da Farmácia Stellfeld, de 1857, ainda ativo na Praça Tiradentes. que participa, no conto Prova de redação, de uma cena erótica entre um escritor velho-babão e uma lolita com uniforme de normalista: “De repente o doutor me empurra (eu? ela?) de cara contra a parede. Ergue a saia e bota o Ponteiro do Relógio de Sol (tem um lá na Praça Tiradentes, isso que é falar bonito!) dentro da calcinha entre as bochechas (ai, lindas bochechas minhas, bem redondas, assim empinadas).” Outra alusão fálica, ali perto: “O doutor exibe o que chama de Memorial de Curitiba, com troféus e escudos pendurados.”
Um dos fetiches daltescos é “a Ponte Preta da estação, a única ponte da cidade, sem rio por baixo”, cenário do conto Debaixo da Ponte Preta, uma fina paródia do filme japonês Rashomon: “Na noite de vinte e três de junho, Ritinha da Luz, com dezesseis anos, solteira, prenda doméstica, ao sair do emprego, dirigiu-se à casa de sua irmã Julieta, atrás da Ponte Preta. Na linha do trem foi atacada por quatro ou cinco indivíduos, aos quais se reuniram mais dois. Então violada por um de cada vez e abandonada entre as moitas. Seu choro atraiu um guarda-civil, que a conduziu até a delegacia.”
O local na Marechal Floriano (entre Rua XV e Praça Tiradentes) onde ficava o sórdido bar Buraco do Tatu é outra parada no roteiro do Daltonsday: “Garçom do Buraco do Tatu, trabalhava até horas mortas; uma noite voltou mais cedo, as duas filhas sozinhas, a menor com febre. João trouxe água com açúcar e, assim que ela dormiu, foi espreitar na esquina. Maria chegava abraçada a outro homem, despedia-se com beijo na boca. Investiu furioso, correu o amante. De joelho a mulher anunciou o fruto do ventre.”
Outros marcos, materiais e imateriais, da odisseia urbana de Dalton: “Os conquistadores na esquina da Escola Normal, os bailes da Sociedade Operária, os Chás de Engenharia (“onde as donzelas aprendem de tudo, menos a tomar chá”), as ruas de barro com mil e uma janeleiras e seus gatinhos brancos de fita encarnada no pescoço, a zona da Estação, a sociedade secreta dos Tulipas Negras (uma pioneira confraria gay), o Templo das Musas com os versos dourados de Pitágoras, o expresso de Xangai que apita na estação, o Pavilhão Carlos Gomes, as pensões familiares de estudantes, o relógio na Praça Osório que marca implacável seis horas em ponto, os sinos da Igreja dos Polacos, o bebedouro na pracinha da Ordem.”
Finalmente, além da Livraria do Chain, que Dalton usou por algum tempo como posta restante informal, temos a casa do escritor na esquina da Ubaldino Amaral com a Amintas de Barros. Ali, há alguns anos, a vida de Dalton foi infernizada por uma seita que tinha seus cultos animados por um rock heavy metal ensurdecedor.
“No princípio era o silêncio na Rua Ubaldino, eis que o número 666 da Igreja Central Irmãos Cenobitas ergueu cartazes anunciando sinais e prodígios, não a flauta doce e harpa eólia para louvar o Senhor, mas a caixa de ressonância da buzina do Juízo Final e o amplificador dos agudos desafinados de Gog e Magog, além da mão esquerda não saber o que faz a direita, as duas juntas rompem no batuque iconoclasta do bumbo, nunca tal se viu na Rua Ubaldino de hospital escola gente calada.”
Passado o terror cenobita, instalou-se nos últimos anos na casa vizinha da Amintas de Barros uma sauna gay com música de discoteca. Depois de insistentes queixas, o escritor reconquistou seu direito sagrado ao silêncio. Só espero que a instituição do Daltonsday não leve hordas de turistas curiosos a perturbar o seu sossego.
Longa vida e muita paz ao nosso Vampiro querido!
Roberto Muggiati
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