O romance é o primeiro volume da trilogia Fronteiras do Universo. Mas, quando foi publicado pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1996, o livro foi proibido em algumas partes do país. E, em 2008, era o segundo livro mais questionado dos Estados Unidos.
No Reino Unido, A Bússola de Ouro ganhou a Medalha Carnegie para ficção infantil em 1995 e, em 2019, Pullman recebeu o título de cavaleiro e o prêmio J. M. Barrie daquele ano, pela "conquista da sua vida, de encantar as crianças".
Mas a visão de mundo apresentada por A Bússola de Ouro e pelos outros livros da trilogia, considerada por alguns de teor ateísta, acabou perturbando algumas minorias barulhentas nos Estados Unidos.
Em 2008, a Associação Norte-Americana de Bibliotecas (ALA, na sigla em inglês) publicou uma lista de livros proibidos, classificando A Bússola de Ouro como o segundo livro mais questionado do país, com as objeções apresentadas pela Liga Católica. E, de fato, a trilogia causou indignação em alguns setores nos Estados Unidos.
No Reino Unido, o colunista Peter Hitchens afirmou que Pullman foi "o anti-[C. S.] Lewis, aquele por quem os ateus teriam rezado, se os ateus rezassem". Vale lembrar que o livro de Lewis O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa - o primeiro da série As Crônicas de Nárnia - ocupa o sétimo lugar na lista dos 100 melhores livros infantis de todos os tempos, elaborada pela BBC.
A proibição de A Bússola de Ouro pode ser considerada precursora da censura de livros por razões "morais", religiosas ou de visão de mundo. Mas, agora, o questionamento e a proibição de livros nos Estados Unidos atingiram níveis sem precedentes.
A ALA registrou um número inédito de questionamentos de livros em 2022, incluindo mais de 2,5 mil títulos individuais. Este é o maior número de tentativas de proibição de livros desde que a ALA começou a acompanhar os dados de censura, há mais de 20 anos.
Diversos livros para jovens foram objeto de questionamento por temas como raça, gênero e sexualidade. Eles incluem Gênero Queer: Memórias, de Maia Kobabe (Ed. Tinta da China, 2023); Nem Todos os Meninos são Azuis, de George M. Johnson (Ed. Moinhos, 2022); O Olho Mais Azul, de Toni Morrison (Ed. Cia. das Letras, 2019); e Lawn Boy ("Menino jardineiro", em tradução livre), de Jonathan Evison (sem edição em português).
"Em última análise, as tentativas de proibir livros são iniciativas para silenciar escritores que tiveram a imensa coragem de contar suas histórias", segundo a presidente da ALA, Lessa Kanani'opua Pelayo-Lozada.
"Os livros questionados pelas pessoas, em sua maioria, são escritos por indivíduos LGBTQ+ ou pessoas não brancas, ou falam sobre eles. Estes livros estão nas prateleiras das bibliotecas porque alguém na comunidade quer lê-los. O trabalho do bibliotecário é oferecer acesso a esses escritores e suas histórias, seja porque elas refletem a experiência do leitor ou porque ajudam a esclarecer um ponto de vista desconhecido", afirma Pelayo-Lozada.
Ela prossegue: "Os americanos gostam da liberdade de expressão e de se envolver na expressão dos demais. Nós escolhemos os livros e as ideias com as quais queremos nos envolver, mas não podemos decidir o que os nossos vizinhos podem ler e pensar. Nós não podemos silenciar histórias de que não gostamos."
O movimento de proibição de livros é conduzido por uma minoria barulhenta que exige a censura, segundo Kasey Meehan, diretora do projeto Liberdade de Leitura da organização PEN America.
"Este ano escolar presenciou os efeitos de novas leis estaduais para censurar ideias e materiais nas escolas públicas, em uma extensão do movimento de proibição de livros iniciado em 2021 por cidadãos locais e grupos ativistas", segundo Meehan.
Para ela, "estes esforços para refrear a liberdade de expressão são parte da campanha em andamento em todo o país para incentivar a ansiedade e a raiva, com objetivo de suprimir a livre expressão na educação pública."
As proibições ocorreram em 32 Estados americanos, afetando quatro milhões de crianças e jovens. A maioria dos livros atingidos pela onda de proibições aborda temas como violência e abusos, saúde e bem-estar ou casos e temas de morte e luto.
Os motivos apresentados pelas pessoas que apresentam os questionamentos incluem "propaganda de ideologia de gênero", "material transexual", "apoio à ideologia trans que ofende as meninas/mulheres", "desregramento sexual", "uso de álcool/drogas", "conteúdo LGBTQ", "violência", "antipolicial", "racista", "obsceno", "pedofilia" e "aliciamento".
"Nos últimos 10 a 13 anos, os livros LGBTQ ficaram sexualmente muito visuais", declarou ao jornal The Washington Post Jennifer Pippin, mãe do Estado americano da Flórida e questionadora de livros. Pippin é fundadora da organização Moms for Liberty (Mães para a Liberdade).
Ela afirma que a preocupação com livros LGBTQ não é homofóbica, mas recai sobre a natureza "sexualmente explícita" dos textos.
"Os questionadores de livros são a minoria da população, mas são uma minoria barulhenta... e organizada, determinada a impor sua vontade em todos os níveis de governo", declarou à BBC o escritor Jonathan Evison. "Por isso, é muito importante sermos diligentes e organizados nos nossos esforços de defender a liberdade de expressão."
O romance de Evison, Lawn Boy, conta a história de um jovem jardineiro americano de origem mexicana que luta para encontrar seu caminho entre a classe trabalhadora de Seattle, nos Estados Unidos. O livro ocupa o sétimo lugar na lista de títulos mais proibidos da ALA.
Noventa por cento dos questionamentos realizados em 2022 foram listas compiladas por grupos organizados de censura, segundo o estudo da ALA. Destas, 40% incluíam 100 livros ou mais.
"Os questionadores de livros desenvolveram uma espécie de manual - uma lista de livros questionados, com os trechos ofensivos de cada obra", segundo o escritor Dave Eggers. Seu livro mais recente é o romance para todas as idades The Eyes and the Impossible ("Os olhos e o impossível", em tradução livre - ainda sem edição em português).
Eggers visitou Rapid City, no Estado americano de Dakota do Sul, depois que seu romance O Círculo (Ed. Cia. das Letras, 2014) foi proibido nas escolas de ensino médio da cidade e todas as cópias existentes naquele distrito escolar foram destruídas.
Em 17 de maio de 2023, o escritor George M. Johnson, a PEN America, a editora Penguin Random House, e diversos outros escritores e os pais de duas crianças de um distrito escolar entraram com uma ação na justiça da Flórida contra um condado que retirou livros, violando a primeira e a 14ª Emenda à Constituição Americana. Eles pedem que os livros sejam devolvidos para as prateleiras das bibliotecas escolares às quais pertencem.
Johnson é o autor do livro Nem Todos os Meninos são Azuis, que apresenta a infância e a adolescência do ponto de vista de um menino queer negro.
"O que me dá esperança é que a maior parte do país é contra a proibição de livros", declarou ele à BBC. "O fato de que as proibições estão levando os estudantes a lutar pelo seu direito de ter os livros. E que estamos ganhando em muitos condados e mantendo os livros nas prateleiras."
"Estamos motivados, organizados e prontos para continuar com esta luta pelo tempo que for necessário", prossegue Johnson. "E a proibição de livros não impediu as editoras de fazer com que mais histórias sejam escritas. Algum dia, haverá tantas histórias que você não irá conseguir proibir todas."
O Olho Mais Azul, de Toni Morrison (1931-2019), ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 1993, é uma história sobre o amadurecimento que examina os efeitos do racismo sobre a psique de uma jovem. O livro ocupa a terceira posição na lista de títulos mais questionados da ALA.
Certa vez, Morrison explicou que o título do livro foi inspirado por uma amiga de infância negra que, aos 11 anos de idade, contou a ela que estava rezando para ter olhos azuis por dois anos.
"Este tipo de racismo machuca", disse Morrison. "Não é linchamento, assassinato ou afogamento. É dor interior."
No momento em que a BBC homenageia os 100 melhores livros infantis de todos os tempos, surge a oportunidade de imaginar os livros infantis que ainda serão escritos (e ilustrados), as inúmeras vozes que ainda serão ouvidas e as histórias que esperam para serem contadas. E de considerar o eloquente argumento de Morrison contra a proibição de livros na antologia publicada pela PEN America intitulada Burn this Book ("Queime este livro", em tradução livre), editada por ela:
"O pensamento que me leva a observar com medo o apagar de outras vozes, de romances não escritos, poemas sussurrados ou engolidos por medo de que sejam ouvidos pelas pessoas erradas, linguagens proibidas florescendo nos subterrâneos, questões de ensaístas desafiando as autoridades nunca sendo formuladas, peças teatrais não encenadas e filmes cancelados - este pensamento é um pesadelo. É como se todo um universo estivesse sendo descrito em tinta invisível."
Nenhum comentário:
Postar um comentário