sexta-feira, junho 16

Tempo de geada

Meio encolhido no seu pijama de pelúcia, com uma manta de lã enrolada no pescoço, era com um certo gosto de tropeiro que oferecia a cara à mordida gelada e úmida do ar do alvorecer. Era bom sentir no côncavo da mão e nos dedos o calor da cuia de chimarrão e mais saboroso ainda chupar a velha bomba que herdara do velho Xisto, reter na boca, meio queimando a língua, o mate escaldante e depois deixar o amargo descer devagarinho, faringe e esôfago abaixo, e ir aquecer-lhe o peito, como um poncho para uso interno. A geada branqueava os telhados. Galos cantavam em quintais próximos e distantes e, como sempre acontecia nessa hora, Tibério pensou nas incontáveis alvoradas de sua vida, na cidade e no campo, e por alguns instantes lhe passaram pela mente as imagens de seu pai, de seus irmãos e de outros amigos mortos que estavam sepultados lá em cima da coxilha e que não podiam mais ver a luz do dia. Essa era a única hora em que às vezes ele pensava na sua própria morte, principalmente agora que tinha entrado na casa dos sessenta.

Erico Verissimo, "Incidente em Antares" 

Nenhum comentário:

Postar um comentário