Bolei uma dieta literária, uma espécie de oficina de auto-ajuda em self-service. Durante doze meses, o Penitente tem que passar cada período de 30 dias lendo unicamente obras de um mesmo autor. Na quantidade que quiser, mas sem misturar com nenhum outro.
O objetivo é fazer uma faxina linguística e mental para se reaproximar da literatura (prosa e poesia) de outra direção.
Por exemplo: faria bem a um leitor culto, interessado em expandir seus horizontes, dedicar seu mês de janeiro exclusivamente à leitura de Gertrude Stein. Digo isso porque não li quase nada dela. Stein foi quem disse famosamente que “uma rosa é uma rosa é uma rosa”, e ela costuma escavacar suas coisas perto do “grau zero da linguagem”. Por isso mesmo, fiquei com medo de levar uma varredura desse nível em meu sistema operacional. Mas acho que os textos enganosamente simples e enganosamente repetitivos dela são um bom detergente mental. Bancando uma aposta eu encarava!
Fevereiro seria dedicado a outro que escreve quase assim: Samuel Beckett, cujos textos em prosa são um monólogo monótono e monocórdio monopolizando monomanias monoteístas. Beckett foi amigo de James Joyce, mas seus escritos são mais próximos da prosa de Stein do que da do outro irlandês. Os seus Textos Para Nada e os vários romances são exemplos dessa linguagem. Para alguns leitores, ele “taxia mas não decola”, ou seja, cria situações fascinantes mas não conta uma história. Injustiça. Beckett dá até umas decoladas. Sua obra mais famosa encerraria fevereiro: Esperando Godot, talvez a obra mais legível, mais lúdica e mais esperançosa de Beckett.
Depois desse spa, o leitor pode se recuperar aos poucos lendo ao longo de março a obra de Paulo Leminski. Uma semana para seus “hai-quases” e poeminhas-piada. Depois os artigos literários, depois os poemas mais longos de Polonaises. (Lembrem-se: todo poema de verdade precisa ser lido três vezes – uma de manhã, outra de tarde e outra de noite. Menos que isto não vale.) Em seguida, pode ler as biografias, a de Cruz e Sousa e principalmente a de Bashô, primoroso raio-X poético. E encerrar tudo com o Catatau, uma festa-de-Babette para quem acabou de sair dum spa.
Abril pode prolongar esse estado de euforia verbal com a leitura de Guimarães Rosa. Ler Grande Sertão: Veredas em um mês seria como ver a floresta amazônica brotar diante dos próprios olhos em stop-motion. Esqueçam a pirâmide. Sugiro ler os obeliscos isolados que são os demais livros. Os contos de Tutaméia, por exemplo, têm todos uma angulosidade verbal muito semelhante, e se enfraquecem mutuamente quando lidos em série. Melhor alterná-los com as noveletas de Sagarana e Corpo de Baile e com os contos longos de Primeiras Estórias.
Maio seria dedicado a João Cabral de Melo Neto, que depois de Rosa é uma boa maneira de ir reduzindo a marcha, tirando o pé. Rosa é barroco, exuberante, mesmo quando compacta histórias inteiras em duas páginas. João Cabral tem uma linguagem de aspecto severo e monástico, mas ele mostra a riqueza que a dicção severa pode ter. O mês começaria com os poemas cênicos (Morte e Vida Severina, o Auto do Padre), depois os poemas mais longos e narrativos onde a linguagem é mais amiga do usuário, como O Cão Sem Plumas, percorreria outros títulos a gosto do freguês, mas acabaria na Educação pela Pedra.
Junho daria ao Penitente leitor a chance de ler George Perec, por mero efeito de continuidade. Falei que a poesia de Cabral é severa; as teorias da OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle), grupo de que Perec fez parte, chegam a ser masoquistas, de tantas condições que impõem à prosa. Em obras como W, ou a memória de infância, Um homem que dorme, As coisas e A Vida modo de usar, um esqueleto rígido de estruturas verbais dignas de Cabral é recoberto com fabulação da pop-filosofia perequiana, uma prosa tão rigorosa quanto a poesia do pernambucano, mas saturada de faits-divers, memorabilia, cultura oral, alusões livrescas, peripécias pulp-fiction.
Julho seria o momento de ler Garcia Márquez, onde o arcabouço estrutural é menos explícito, mas existe a mesma escritura de ferro regendo os enredos. A linguagem, a estilística, predominou no primeiro semestre; no segundo, o leitor irá mergulhando nos autores onde predomina a maneira de tratar a matéria narrada. Julho pode começar com Cem anos de solidão ou O Outono do Patriarca, ou outro romance preferido do leitor. Depois, ele pode visitar os contos, e encerrar com o livro de memórias Viver para contar. Quando ele então perceberá que seus conceitos de ficção e memória são agora indistinguíveis um do outro.
Este último critério pode aliás ser posto à prova em agosto, quando Márquez for substituído por Philip K. Dick. Justapor Dick a Márquez ajuda a diluir as fronteiras de gêneros como ficção científica e realismo mágico. A obra de PKD é vasta, mas um mês em que alguém lesse pela primeira vez na vida Ubik, Do Androids Dream..., O Homem do Castelo Alto, Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, Time Out of Joint, A Maze of Death e mais algum outro seria sem dúvida um mês inesquecível. E o leitor perceberia que seus conceitos do que é real e do que é fantástico já terão sofrido uma atualização para a versão 2.0.
Setembro poderia ser dedicado à leitura de Fernando Pessoa, mas, mantendo a fidelidade ao espírito da dieta, os heterônimos teriam que ser lidos em sequência, sem misturar, começando pelo próprio Fernando de Mensagem, passando em seguida para Ricardo Reis, Alberto Caeiro, o Bernardo Soares do crepuscular Livro do Desassossego e concluindo com a explosão futurista (em todos os sentidos) de Álvaro de Campos. O objetivo disto é fazer com que os conceitos do leitor sobre o que é o “Eu” sofram uma atualização para o século 21.
Em outubro, ainda eletrificado pelo verso voltaico e galvânico de Campos, o leitor pode por fim entender melhor a obra de Augusto dos Anjos, e desta vez, dada a complexidade inédita do material, pode-se omitir o conjunto de sua obra poética, concentrando-se o leitor apenas no Eu e Outras Poesias na seleção canônica de Órris Soares. Isto ajudará o leitor na árdua tarefa de atualizar seus conceitos sobre cosmopolitismo e provincianismo, num momento crucial (agora) em que o primeiro está ameaçado de desaparecer pela proliferação exponencial de exemplares do segundo em suas versões metropolitanas.
Pensei muito no mês de novembro, e acho que o leitor merece uma “limpa”, como a gente diz na Paraíba: uma faxina geral nas tralhas do consciente e da memória verbal. Sabe aquelas problemas de matemática em que a página parece uma partitura sinfônica, e a gente sai cortando, simplificando, até encontrar um equivalente límpido e minimalista para aquilo tudo? Ítalo Calvino é uma resposta, começando pelo seu indispensável Seis Propostas Para o Novo Milênio, percorrendo com gosto suas fabulações da trilogia do Visconde/Barão/Cavaleiro, a aventura tarológica do Castelo dos Destinos Cruzados, o límpido labirinto do Se Um Viajante Numa Noite de Inverno, e culminando com as Fábulas Italianas, onde o autor desce às fontes de si mesmo.
Dezembro é sempre um mês movimentado. Festas, trabalho, férias, viagens, família... Não há tempo para ler demais, e os ciclos de morte e ressurreição do planeta nos induzem à contemplação meditativa. Terminemos o ano, pois, relendo a obra de Emily Dickinson, uma poesia que nos seus volteios acaba tocando várias das literaturas discutidas nos meses anteriores. Depois desses autores tão biografados, televisados, premiados, fotografados, autores que escreviam sob as luzes da ribalta, por assim dizer, vamos ler uma poetisa do lusco-fusco, do intimismo. Uma poética um tanto clássica e espartilhada, de um lado, e muito anticonvencional e idiossincrática por outro. E uma poetisa que, se estendesse a mão, tocaria a de Gertrude Stein fechando o ciclo.
Nota Final: Sim, sei que os autores preferidos de vocês ficaram de fora, mas vejam que muitíssimos deles substituiriam o titular de um dos meses acima sem que a sequência educacional fosse rompida. Façam suas próprias listas. A única obrigação é explicar “por quê”.
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