As piras contemporâneas nas quais ardem livros proibidos já não são as mesmas utilizadas pelo bombeiro Guy Montag, protagonista do Fahrenheit 451. Mas, como na ficção, vivemos tempos de distopias, impulsionadas pela polarização e por ondas de fundamentalismo religioso, xenofobia, racismo e discriminação de gênero. Fahrenheit, continua entre nós. Inclusive no berço da democracia moderna, primeiro país a consignar na sua Constituição os valores dos iluministas. Entre eles a liberdade de expressão e de pensamento.
Segundo a American Library Association, os pedidos de retirada de livros de escolas e bibliotecas em 2022 alcançaram o maior número nos últimos 20 anos. Esse dado é corroborado pela ONG América Pen, segundo a qual no ano letivo de 2021-2022 mais de 2.500 proibições de livros foram emitidas por distritos escolares em 32 estados americanos. Atingiram um universo de 5 mil escolas e 4 milhões de alunos.
A maioria das proibições envolve obras que abordam questões de identidade sexual ou racial, como é o caso do livro “Nem todos os garotos são azuis”, de George M. Johnson. No topo dos mais censurados nas escolas e bibliotecas está o HQ “Gênero Queer”. Clássicos como “O olho mais azul” e “O sol é para todos” também entraram no index da nova onda macarthista.
A explosão das proibições de livros teve crescimento de 40% em um ano nos Estados Unidos. Tornou-se uma questão nacional, invadindo a agenda da disputa presidencial. O presidente Joe Biden acusa seus adversários de atuarem como Girolamo Savonarola, padre dominicano que na Firenze renascentista queimou obras de Dante, Ovídio e de Boticelli. Biden não deixa de ter razão. A maioria dos pedidos de proibição a livros vem de círculos reacionários próximos ao trumpismo.
Não é um fenômeno exclusivamente americano e pode chegar até nós. Aliás, já chegou. A Universidade Rio Verde, de Goiás, retirou de sua lista de obras literárias recomendadas o livro “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” por pressão do deputado Gustavo Gayer, do Partido Liberal. Como presidente da Fundação Palmares, no governo passado, Sérgio Camargo quis retirar do acervo da Fundação mais de 300 obras sob o argumento de que tinham traços “marxistas, bandidólatras, perversão sexual e bizarrias”. Na mesma linha, o então prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella mandou retirar, em 2019, da Feira Bienal do Livro o HQ “Vingadores: a cruzada das crianças”, por trazer na capa dois rapazes se beijando.
A nova onda de caça às bruxas nos remete a tristes páginas da história da humanidade. A destruição de obras literárias é tão antiga como o próprio livro. Antecede à grande invenção de Gutemberg, a imprensa, que democratizou o acesso ao conhecimento, à cultura e, em especial, à literatura. Tabletas de argila, papiros e pergaminhos foram destruídos ao longo dos séculos, por guerras ou por questões de natureza moral, política, ideológica ou religiosa. As sucessivas destruições da Biblioteca de Alexandria – com mais de um milhão de livros – fez desaparecer um acervo inestimável da literatura antiga.
Fahrenheit 451 já existia séculos e séculos antes de se transformar em uma grande obra. O poeta alemão Heinrich Heine (1797- 1856) dizia: “Os que queimam livros acabam queimando homens”. Hitler é o maior exemplo. Em 10 de maio de 1931 livros queimavam em 22 cidades alemãs. Para não terem o mesmo destino dos milhões de judeus mortos em câmaras de gás e incinerados nos fornos de campos de concentração, escritores como Bertolt Brecht, os irmãos Thomas e Henrich Mann, Ernest Toller, cujos livros arderam nas fogueiras nazistas, tiveram de deixar a Alemanha.
Savonarola entendia o Renascimento como símbolo da frouxidão moral e da degenerescência. Para livrar Firenze de seus males, patrocinou em 7 de fevereiro de 1497 a mais trágica de suas “fogueiras da vaidade”, queimando livros e obras de artes que, segundo ele, incitavam o pecado da verdade. Depois, a Igreja mandou queimar todos os escritos e sermões de Savonarola. E após ser condenado à forca, seu cadáver foi consumido nas mesmas chamas a que ele tinha condenado tantas obras literárias.
A censura, a proibição, a destruição ou a queima de livros não são um monopólio de regimes autoritários. Mesmo os Estados Unidos, país exemplo de democracia, tem em sua história páginas nas quais não tem motivos para se orgulhar.
Em 1956 a agência americana FDA iniciou um processo para proibir a venda de livros do psiquiatra e sexólogo austro-americano Wilhelm Heich. Como consequência, alguns livros de Reich foram confiscados e destruídos. Entre eles o clássico “A função do orgasmo”. Nem mesmo a obra prima-prima de James Joyce, Ulysses, escapou da censura. Em 1922 sua publicação e venda foram proibidas porque, segundo os censores, tinha teor obsceno, “além de conter pornografia e blasfêmias”. Só em 1933 o livro foi liberado – por decisão judicial.
Um dos maiores romances russos do século vinte, o épico “Vida e Destino”, de Vassili Grossman, escrito em 1962, só seria publicado na antiga União Soviética mais de 40 anos depois, já nos estertores da “pátria-mãe do socialismo”, quando seu autor já tinha morrido. Segundo Mikhail Suslov, ideólogo do Partido Comunista soviético desde o fim da segunda guerra, “Vida e Destino” só poderia ser publicado “daqui a 250 anos” pelas ameaças que representava ao regime.
Quando se transformam em política de estado nos regimes totalitários, a perseguição a escritores e a destruição de livros nos faz retroagir à barbárie. A pretexto de se livrar de “Quatro velhos – velhas ideias, velhas culturas, velhos costumes e velhos hábitos”, a Revolução Cultural de Mao Tsé Tung mandou queimar todos os textos sagrados e toda literatura ocidental. No Camboja do Kmer Vermelho a Biblioteca Nacional de Phnom Penh foi destruída e em sua porta penduraram um letreiro: “Não temos livros. O governo do povo triunfou”. É Fahrenheit em estado puro.
Que seu fantasma deixe de rondar o mundo.
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