Luzes acesas e aquele choque de Mabel ante as paredes mal caiadas. Ante a pobreza de tudo. A vida encolhera a comodidade como a água encolhe qualquer tecido vagabundo.
Na manhã seguinte, após um sono cruelmente incômodo, teve de levantar-se cedo para analisar os limites do abandono. Nem sequer uma tampa de privada existia na casinha que por crueldade se colocava fora da casa. Igual a todas as outras tantas casas na vizinhança. Dentro havia um pequeno tanque e um banheiro que nunca conhecera uma coisa chamada água quente.
Do lado de fora, sob uma cobertura, existia um tanque de lavar roupa que a esperava e a esperaria todos os dias.
Felizmente, na mesinha modesta da cozinha, Roberto fizera o café simples e se encarregara de ir a qualquer botequim comprar pão e uma lata de manteiga.
Por dois dias todos deixariam de trabalhar para colocar a casa em ordem. E a casa tomou um certo jeito. As camas ficaram feitas, e as roupas, guardadas em pequenos armários e na cômoda rósea e usada da sala. Sobre ela colocaram o velho relógio, que parecia suspirar de desgosto marcando o tempo. Parecia sentir falta do que o cercava na antiga casa. Era horrendo o seu vidro refletir pedaços de teto onde não existia forro e sim as telhas vãs, as telhas nuas. De noite, ele via o penetrar até de morcegos. Fato comum em casa que ficara fechada muito tempo. Mas com a invasão da gente, os morcegos voltariam a morar nos laranjais e nos valões no fundo dos quintais.
Foram dois dias e duas noites terríveis. Tinham perdido a vontade de conversar e por qualquer coisa soltavam apenas um sorriso de consolo e resignação.
Depois apareceu o pior. Os filhos levantavam-se ainda madrugada, deixavam-na dormindo e saíam a caminho da estação. Então o seu amanhecer diferente, sem a criada levando-lhe o café na cama, despertou-a em todo o seu amargor. Ainda bem que os filhos procediam com uma humanidade de comover. Deixavam até a pouca louça do café lavada e enxuta.
Sentiu maior o seu grito de silêncio e solidão. Estava só. Lavara o rosto na torneira do tanque e reparou na manhã quente que se anunciava.
Sentou-se desanimada num tamborete e mesmo sentada acendeu uma espiriteira de álcool onde requentou o café. Não tinha vontade nem de conversar com a alma. Apenas rolou as mãos do desânimo ante os olhos, analisando os dedos. Ergueu-se e foi apanhar a tesourinha de unhas sobre a cômoda cor-de-rosa. Enquanto não esquentava o café, principiou a decepar as compridas unhas, visto não significarem mais nada.
Serviu-se do café e mastigou a vida sem importância em forma de pão. Urgia calçar um sapato velho e de salto baixo para ir até à quitanda e ao açougue comprar coisas para cozinhar. No começo, até que se acostumasse com aquilo, a comida deveria sair horrorosa.
Caminhava pela rua de olhos baixos para que não descobrissem o seu desespero. Para não divisar aqueles rostos tão feios e mais feios ainda quando era forçada a encará-los. Forçoso seria engolir em seco em vez de lamuriar-se ou xingar a alma de Gustavo.
Passava os dias só. Completamente só. Não queria mais lembrar-se da outra casa, nem sequer manteria a ilusão de que alguma das “grandes amigas” apareceria até o subúrbio para visitá-la.
Já passadas as oito horas, arrumava-se e se penteava para esperar a chegada dos três filhos e sentir que havia ainda vida ao seu redor.
Mas os três chegavam incrivelmente cansados e pouco tinham a dizer. No começo nem sobraria dinheiro para o gasto de um jornal. E sem música, sem nada para ler, Mabel ruminava o tempo, driblando todos os pensamentos que pudessem torturá-la ou que enchessem os seus olhos de lágrimas quentes.
E algo de tremendamente triste e indiferente começou a se esticar pelas parcelas do seu ser. Pegava a vassoura e varria muitas vezes a casa, sacudia o pó dos poucos móveis que a rua descalça derramava. Fugia de todo o ruído que a rua proporcionava. Não ouvia a briga das mulheres nem o grito do peixeiro. Tapava o ouvido para eliminar os apitos da fábrica.
Se não fizesse assim, acabaria louca, completamente louca. Por vezes sentia rostos vizinhos olhando para o seu degredo. Mas não queria saber de ninguém. Não saberia se aproximar de ninguém tal a distância que a vida lhe preparara, tal a pouca esperança de poder entender aqueles seres que a cercavam.
Vez por outra, parava defronte do espelhinho oval, colocado na cozinha, onde os filhos faziam a barba e se penteavam, e tentava saber se ainda voltaria a ser alguém ou se adquiriria uma nova personalidade que tivesse vislumbres de vida. Mas nem o pequeno espelho sabia conversar, dizer algo que a consolasse ou mesmo criasse um certo ânimo, uma estreita esperança.
Apenas o rosto cansado, mais gasto, sem pintura. As manchas brancas do cabelo invadindo toda a parte onde a tintura ia se desgastando. Só.
– Mabel, você não é nada. Nada! Olhe a sua alma e você verá que não tem mais significado algum dentro da vida.
Sorriu inventando coisas. Se caminhasse até à ponta da cozinha e viesse de lá da porta, o espelhinho, o que refletiria? Uma velha feia, uma bruxa de cabelos caindo sobre a testa, com uma blusa florida e uma saia simplesmente escura. Os sapatos macios, é verdade, mas de salto baixo e usados. Longe se fora o tempo dos sapatos de verniz, de sapatos prateados, dourados…
– Longe, Mabel, que nem você mesma acredita se existiu!...
No quarto dia aconteceu aquilo que mais a apavorava. Nunca fora mulher de pregar um botão. E sempre ouvira dizer que as meias velhas se cerziam. Mas agora a coisa tornava-se uma tragédia maior. O cesto de roupa suja estufava peças para fora. Meias, camisas e cuecas.
Fazia menos de cinco dias que Ricardo esticara uma corda entre duas velhas laranjeiras e sorrira para ela significativamente e com pena. Arrastou o cesto até junto do tanque. Arrolhou-o e deixou escorrer a água da bica. Pelo meio, principiou a jogar peças, uma de cada vez, dentro d’água, que faziam borbulhas ante os seus olhos apavorados. O sabão estava ao lado.
Foi lá dentro, procurou um lenço e instintivamente prendeu os cabelos.
– Não, Mabel. Você prometeu que nada a desanimaria. Pois que está feito, está feito. É só questão de começar.
Enfiou meio enojada as mãos na água tépida e apertou, afogou as peças na água corrente. Desajeitadamente puxava as peças para fora e esfregava o sabão.
Repetia muitas vezes e suas mãos ardiam. Começou com as peças mais leves. Depois de ensaboadas, torceu-as e encaminhou-se para a corda, pendurando-as e até meio satisfeita com a sua conquista. Sentia o sol arder na pele branca, mas não ligou. Voltou para o tanque e tornou a lavar maior número de peças. Quando voltou ao coradouro, o sol ainda era mais forte. Felizmente um pedaço de vento apareceria vindo do fundo do quintal.
Pela terceira vez retornou ao tanque e retirou as últimas peças, torcendo-as; ia encaminhar-se para o varal quando o que viu estancou-a, estrangulando um grito de revolta na garganta.
O vento tinha derrubado todo o seu trabalho. A roupa lavada, no chão de terra e detritos.
Não se conteve, abriu as mãos e deixou que as peças também procurassem o chão.
Bateu com as mãos na parede do tanque por alguns segundos e começou a soluçar, encostando a cabeça no mesmo lugar em que antes batera.
– Meu Deus!... Meu Deus!... Preciso recomeçar tudo de novo.
Continuou soluçando compridamente. Quando uma mão de leve tocou em seus ombros e uma voz toda bondade lhe falou:
– Num chore não, dona. Eu ajudo a senhora.
Ainda de rosto lavado, desvirou-se para a mulher. Era feia, gasta e rachada de rugas, mas seus olhos expandiam bondade.
– Espere um bocadinho.
Foi até a cozinha e trouxe um tamborete.
– Se sente até se acalmar um pouco.
Mabel obedeceu ainda em soluços.
A mulher foi até o varal e recolheu toda a roupa no chão. Voltou sorrindo, esboçando dentro da boca a falha de muitos dentes e a podridão de outros.
– A senhora se esqueceu de colocar os pregadores.
Jogou a roupa dentro da água nova e conversou para acalmá-la.
– Na certa a senhora não tem pregador, não é?
Concordou com a cabeça, mesmo sem saber o que era.
– Eu dou um pulo lá em casa e lhe arranjo uns.
Mabel seguiu-a com os olhos e viu que a mulher passava por um buraco da cerca. Não demorou muito a voltar. E, enquanto o tanque enchia mais, sentou-se em sua beira e tornou a sorrir feiamente.
– A senhora nunca tinha feito isso antes, num foi?
– Nunca. Nunca em minha vida.
Espalmou as suas mãos feridas. As marcas da vassoura e o vergão do esforço ao torcer as peças.
– Que estrago, dona! Umas mãos assim bunitas num nascero pra essas coisa. É uma lasma mesmo. Mas eu dou um jeito. Passei toda a minha vida assim. Foi desde menina. Depois saí da fábrica pra me casar. E nunca mais existiu outra coisa. Menino e pregador.
Enfiou a mão no tanque e Mabel ficou admirada com a habilidade com que fazia tudo. Parecia nem exigir esforço das suas mãos magras e encardidas.
– Viu? Foi um instante. Agora a senhora me ajude. Ponha nessa bacia e venha comigo que a gente vai estender a roupa.
Mabel obedeceu, agradecida.
– Como é que a senhora se chama?
– Bárbara. E a senhora?
– Mabel.
– Pois bem, Dona Mabel, eu venho sempre lavar essa roupa quando a senhora precisar.
– Não é justo, Dona Bárbara, porque não poderemos pagar os seus serviços.
A outra pegava as peças, pendurava na corda e prendia-as com os pregadores. Deteve-se um pequeno tempo e sorriu para Mabel.
– A senhora não precisa de se preocupar. Ninguém está falando em pagamento.
– Mesmo assim não é justo.
– Por quê? A gente neste mundo nasceu foi pra ajudar os outros. E não custa nada, uma roupinha limpinha dessas. Se a senhora visse o que é pegar roupa suada de suor que gruda mesmo e fede. De toda essa gente da fábrica que eu lavo... Aí sim.
– E como é que a senhora dá conta de tudo? A senhora não disse que tinha filhos?
– Cinco, Dona Mabel. Cinco diabos. Tenho de lavar pra fora, costurar a roupa dos cinco e do meu marido e ainda por cima cozinhar pra essa cambada toda.
Quando acabaram o serviço, havia um sorriso de gratidão no rosto afogueado de Mabel.
– Quando a senhora precisar me chame, sim?
– Não é justo, Dona Bárbara. A senhora já tem tanto o que fazer.
– Pelo menos até a senhora se acostumar com essa vida braba, eu venho lhe ajudar.
Mabel acompanhou a mulher até junto da cerca. Foi tomada de curiosidade.
– Como é que a senhora viu o que estava acontecendo?
– Tava caçando uma galinha danada de arisca que eu tenho e, quando cheguei aqui perto, vi tudo.
Começou a esgueirar-se pela cerca furada de bambu. Mas antes de entrar em casa falou para Mabel.
– Se a senhora não se incomoda, eu tenho que passar às vezes por aqui pra pegar uma galinha preta de pescoço pelado que tem mania de botar lá no fundo do seu quintal...
– Venha quando quiser e na hora que quiser. Obrigada.
Mabel fugiu do sol e foi sentar-se no tamborete para descansar. E quando entrou na cozinha, sem querer, olhou o espelhinho oval e descobriu que ele lhe devolvia o primeiro dos seus sorrisos. O primeiro, depois de tantos dias atormentados.
José Mauro de Vasconcelos, "A rua descalça"
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