quarta-feira, outubro 4

Os leitores não podem deixar de ser subversivos

De início, mantinha meus livros em rigorosa ordem alfabética, por autor. Depois passei a separá-los por gênero: romances, ensaios, peças de teatro, poemas. Mais tarde tentei agrupá-los por idioma, e quando, durante minhas viagens, era obrigado a ficar apenas com alguns, separava-os entre os que dificilmente lia, os que lia sempre e aqueles que esperava ler. Às vezes minha biblioteca obedecia a regras secretas, nascidas de associações idiossincráticas. O romancista espanhol Jorge Semprún mantinha Carlota em Weitnar, de Thomas Mann, entre seus livros sobre Buchenwald, o campo de concentração em que estivera, porque o romance começa com uma cena no Hotel Elefante, em Weimar, para onde Semprún foi levado depois de sua libertação. Certa vez, pensei que seria divertido construir uma história da literatura a partir de agrupamentos como esse, explorando, por exemplo, as relações entre Aristóteles, Auden, Jane Austen e Marcel Aymé (em minha ordem alfabética), ou entre Chesterton, Sylvia Townsend Warner, Borges, são João da Cruz e Lewis Carrol (dentre os que mais gosto). Parecia-me que a literatura ensinada na escola — na qual se explicavam as ligações entre Cervantes e Lope de Vega com base no fato de serem do mesmo século e na qual Platero e eu, de Juan Ramón Jiménez (uma história floreada da paixão tola de um poeta por um burro), era considerado uma obra-prima - era tão arbitrária ou constituía uma escolha tão aceitável quanto a literatura que eu mesmo podia construir, baseado nas minhas descobertas ao longo da estrada sinuosa de minhas próprias leituras e no tamanho de minhas próprias estantes. A história da literatura, tal como consagrada nos manuais escolares e nas bibliotecas oficiais, parecia-me não passar da história de certas leituras — mais velhas e mais bem informadas que as minhas, porém não menos dependentes do acaso e das circunstâncias.


Em 1966, um ano antes de terminar o colégio, quando se instalou o governo militar do general Onganía, descobri um outro sistema de organização dos livros. Sob suspeita de serem comunistas ou obscenos, certos títulos e determinados autores foram colocados na lista dos censores, e, nas batidas policiais cada vez mais frequentes em cafés, bares, estações de trem ou simplesmente na rua, tornou-se tão importante não ser visto com um livro suspeito nas mãos quanto estar com os documentos apropriados. Os autores proibidos - Pablo Neruda, J. D. Salínger, Maximo Gorki, Harold Pinter - formavam uma outra e diferente história da literatura cujas ligações não eram evidentes nem duradouras e cuja comunhão revelava-se exclusivamente pelos olhos meticulosos do censor. Mas não são apenas os governos totalitários que temem a leitura. Os leitores são maltratados em pátios de escolas e em vestiários tanto quanto nas repartições do governo e nas prisões. Em quase toda parte, a comunidade dos leitores tem uma reputação ambígua que advém de sua autoridade adquirida e de seu poder percebido. Algo na relação entre um leitor e um livro é reconhecido como sábio e frutífero, mas é também visto como desdenhosamente exclusivo e excludente, talvez porque a imagem de um indivíduo enroscado num canto, aparentemente esquecido dos grunhidos do mundo, sugerisse privacidade impenetrável, olhos egoístas e ação dissimulada singular (“Saia e vá viver!”, dizia minha mãe quando me via lendo, como se minha atividade silenciosa contradissesse seu sentido do que significava estar vivo.) O medo popular do que um leitor possa fazer entre as páginas de um livro é semelhante ao medo intemporal que os homens têm do que as mulheres possam fazer em lugares secretos de seus corpos, e do que as bruxas e os alquimistas possam fazer em segredo, atrás de portas trancadas. O marfim, de acordo com Virgílio, é o material de que é feito o Portal dos Sonhos Falsos; segundo Sainte-Beuve, é também o material de que é feita a torre do leitor.

Borges disse-me certa vez que, durante uma das manifestações populistas organizadas pelo governo de Perón em 1950 contra os intelectuais da oposição, os manifestantes gritavam: “Sapatos sim, livros não”. A resposta - “Sapatos sim, livros sim”- não convenceu ninguém. Considerava-se a realidade a dura, a necessária realidade em conflito irremediável com o mundo evasivo e onírico dos livros. Com essa desculpa, e com efeito cada vez maior, a dicotomia artificial entre vida e leitura é ativamente estimulada pelos donos do poder. Os regimes populares exigem que esqueçamos, e portanto classificam os livros como luxos supérfluos; os regimes totalitários exigem que não pensemos, e portanto proíbem, ameaçam e censuram; ambos, de um modo geral, exigem que nos tornemos estúpidos e que aceitemos nossa degradação docilmente, e portanto estimulam o consumo de mingau. Nessas circunstâncias, os leitores não podem deixar de ser subversivos.
Alberto Manguel, "História da leitura"

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