segunda-feira, outubro 23

Matéria de Poesia

Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia

O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia

Terreno de 10 x 20, sujo de mato — os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia.

As coisas que não levam a nada
têm grande importância

Cada coisa ordinária é um elemento de estima
Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral.

O que se encontra em ninho de João-Ferreira:
caco de vidro, grampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia.

As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia.

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia.

As coisas que os líquenes comem
— sapatos, adjetivos —
têm muita importância para os pulmões
da poesia.

Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia.

Os loucos de água e estandarte
servem demais

O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso

Tudo que explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta.

Pessoas desimportantes
dão pra poesia
qualquer pessoa ou escada.

Tudo que explique
a lagartixa da esteira
e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia.

O que é bom para o lixo é bom para a poesia.

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços.

As coisas jogadas fora
têm grande importância
— como um homem jogado fora.

Aliás é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória.

As coisas sem importância são bens de poesia
Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
ao poema, e as andorinhas de junho.

Manoel de Barros, "Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda)"

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