Sim, é verdade, ele disse que Zélia Cardoso de Mello, a ministra da Economia do governo Collor, era a personalidade pública mais fascinante que havia surgido no país desde Juscelino Kubitschek, e, não satisfeito, escreveu uma biografia autorizada em que 143 das 267 páginas eram dedicadas aos detalhes do envolvimento amoroso que a referida senhora manteve com outro ministro, um affair iniciado num evento público, diante de jornalistas, com o casal dançando “Bésame Mucho”.
O mineiro Fernando Sabino, morto em 2004, completaria 100 anos no próximo dia 12 e estava sentado à mão direita de Rubem Braga, o Deus supremo dos cronistas, quando em 1991 publicou “Zélia, uma paixão”. Tinha um currículo monumental. O romance “Encontro marcado” era um dos marcos da literatura brasileira, assim como a coleção de 20 livros (“Homem nu” chegou ao cinema) com textos às vezes bem-humorados, outras, filosóficos, que costumam ser rotulados de crônicas. Ao final das 267 páginas de “Zélia”, aquele monumento da mais fina, elegante e acessível prosa nacional estava ao chão. Foi, como se diz em mineirês, um trompaço.
No primeiro dia do governo Collor, a ministra boquiabrira o país com o confisco da poupança e aquilo era só o início de uma tragédia que culminaria com o impeachment do presidente. Em outubro de 91, quando o livro foi lançado, Zélia já estava fora do governo caótico, mas nem isso impediu que Sabino a definisse como uma nova Madame Bovary, a heroína de Flaubert.
A revista Veja classificou o livro como “escandalosamente ruim”, enquanto Millôr Fernandes preferiu perder a amizade, mas não a piada, e, no Jornal do Brasil, desenhou Sabino, seu parça de frescobol no Arpoador, carregando uma mala estufada de dinheiro. Em pânico com a unanimidade adversa, o biógrafo de Zélia trancou-se em casa.
Neste centenário a grande comemoração seria tornar prescrito o trompaço intelectual e descancelar Fernando Sabino, suspender o confisco de sua reputação literária. Devolver-lhe as merecidas glórias.
Aos que não perdoam, que ainda se ressentem da cumplicidade com a era Collor, recomenda-se a leitura de “A última crônica”, um comovente e solidário texto a respeito da desigualdade entre as famílias brasileiras. Num canto de bar, pai, mãe e filha, todos pretos, cantam parabéns para a menina, que assopra a velinha posta não no alto do bolo, mas num único e raquítico pedaço dele.
Mesmo trancado em casa, os fantasmas de “Zélia” – mais de 200 mil almas penadas, digo, livros vendidos – assombravam Sabino, e em seguida, radicalizando a vontade de ficar sozinho, os grandes amigos já todos mortos, ele separa-se de sua mulher há 17 anos, Lygia, a belíssima musa da canção de Tom Jobim. Pior. Revisa novas edições dos livros antigos, apagando o nome dela de todas as dedicatórias e das crônicas em que era musa – o que embaçou sua imagem de cavalheiro. O homem estava nu.
Tudo isso é triste, mas a obra deliciosa de Fernando Sabino paira acima de todos esses trompaços, e neste centenário é preciso resgatá-la. Saudá-la mais uma vez com a mesma alegria que proporciona. A madame Bovary agora mora em Nova Iorque, esquecida. Ficou, e para sempre ficarão, “A inglesa deslumbrada”, “A mulher do vizinho” e a amiga Clarice Lispector, a quem ele escrevia lindas, todas já publicadas, cartas de paquera-existencial. Sim, é preciso vestir Fernando Sabino.
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