Calvino é um clássico, de acordo com as definições que ele próprio apresentou no ensaio “Por que ler os clássicos” (1981). Deixou ali duas máximas inquestionáveis: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” e “Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: ‘Estou relendo...’”. Calvino, ele mesmo, certamente ainda tem muito a dizer — e ser relido.
E nada como um centenário para incentivar a releitura de um autor. Nessas efemérides, reedições costumam se multiplicar pelas livrarias. A Companhia das Letras, que edita a obra completa do italiano no país, já lançou três: “Todas as cosmicômicas”, “Se um viajante numa noite de inverno” e “Por que ler os clássicos”. E promete mais uma para 2024: a trilogia “Os nossos antepassados” (formada pelos romances “O visconde partido ao meio”, “O barão nas árvores” e “O cavaleiro inexistente”).
Amanhã, saem dois audiolivros: “As cidades invisíveis” e “Se um viajante...”, narrados respectivamente por Dan Stulbach e Antônio Fagundes (que é leitor de Calvino desde o início da publicação do autor no Brasil, na década de 1980).
— Conheci Calvino através da trilogia “Os nossos antepassados”. Mesmo que ele não tivesse escrito mais nada, para mim, já seria um clássico — afirma Fagundes. — É como ele mesmo disse: “Ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos”.
Mas não é só com reedições que se comemora o centenário de um clássico. Quatro títulos do italiano até agora inéditos no Brasil acabam de ser publicados: “Nasci na América...”, reunião de 101 entrevistas do autor (que nasceu em Santiago de Las Vegas, em Cuba, e viveu na Itália a partir dos 2 anos); “Um otimista na América” (relatos de sua temporada nos Estados Unidos, entre 1959 e 1960, quando se apaixonou por Nova York, ouviu discursos de Martin Luther King Jr. e não viu graça nenhuma nos beatniks); e duas antologias de contos: “Por último vem o corvo” (1949) e “A entrada na guerra” (1954). Ambas recuperam a experiência do autor durante a Segunda Guerra Mundial, quando se engajou na Resistência italiana e, depois, no Partido Comunista.
Autobiográficas, as histórias de “A entrada na guerra” expressam uma crítica moral ao fascismo. Calvino denuncia o desprezo dos patriotas pelos refugiados, a infantilidade de Mussolini e a vulgaridade de seus seguidores.
Professor da USP e tradutor do italiano, Maurício Santana Dias explica que esses contos memorialísticos pertencem à primeira fase de autor, mais realista, antes que ele abraçasse o experimentalismo que resultou em obras-primas como “Se um viajante...”, romance que é protagonizado por um “Leitor” à procura de um livro que tem dez começos diferentes, um de cada gênero literário. As narrativas da juventude, diz o especialista, já davam indícios dos mundos fabulosos que ele seria capaz de criar.
— No conto “Por último vem o corvo” aparece um jovenzinho com uma pontaria absurda. A atmosfera não chega a ser fantástica, mas há um estranhamento, um tom lúdico — afirma o professor, que traduziu e organizou uma seleta de cartas do italiano, a ser publicada no ano que vem. — Há uma motivação política por trás dessa primeira ficção, que é mostrar a miséria do fascismo. Mas Calvino escolhe narrar da perspectiva de jovens, de adolescentes, o que permite um distanciamento crítico e uma ironia muito autoconsciente, que não atrapalham a fruição do leitor.
Na USP, Dias oferece uma disciplina intitulada “Italo Calvino e outros narradores do século XX”, bastante procurada pelos alunos.
O italiano também está entre os preferidos de escritores brasileiros contemporâneos. O professor Uzzi-Tuzzi, personagem de “Se um viajante...”, por exemplo, faz até uma ponta no romance “O vilarejo”, de Raphael Montes. Autora de “A verdadeira história do alfabeto”, Noemi Jaffe tampouco esconde a influência de Calvino. Ela descobriu o escritor nos anos 1980, quando topou com a trilogia “Os nossos antepassados” (elogiada com fervor por todos ouvidos para esta reportagem). “O visconde partido ao meio” é sobre um aristocrata que é metade bom e metade ruim (e inteiramente insuportável). Em “O barão nas árvores”, um outro aristocrata escolhe observar a vida longe do chão, da copa de carvalhos, olmos e oliveiras. E “O cavaleiro inexistente” é protagonizado por uma armadura vazia (sem ninguém dentro), que, não obstante, comporta-se como soldado exemplar.
— Você lê “O cavaleiro inexistente” e morre de rir. É uma alegoria daquelas pessoas que não têm existência própria, mas vivem para a obediência e a submissão. Em outro livro que eu adoro, “O dia de um escrutinador”, sobre um militante comunista que fiscaliza uma eleição, fica evidente o quanto Calvino combatia a obediência cega, que caracterizou o regime de Mussolini — diz Noemi. — Ele é um clássico por definição, capaz de fazer uma combinação muito rara de clareza e erudição e de levantar questões políticas recorrendo ao absurdo e à imaginação, como se escrevesse contos de fadas.
O escritor Ricardo Lísias, que vem relendo Calvino e compartilhando suas impressões nas redes sociais, descreve o italiano como um “clássico incontornável”. Ele lembra que as “Seis propostas para o próximo milênio” (leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência), anunciadas pelo autor em 1984, continuam na ordem no dia. E destaca a habilidade do italiano de conjugar lucidez e humor.
— Calvino tem textos muito engraçados, mas é um humor ácido. Você lê e pensa: “como eu posso estar rindo disso?”. Causa um certo embaraço, que leva à reflexão. Às vezes, o humor muito ácido pode despolitizar, mas isso não acontece em Calvino. Ele faz graça com profundidade — diz o autor de “Divórcio”. — Por exemplo: “Marcovaldo” é um romance sobre um operário que só tem olhos para a natureza. Ele é um sujeito completamente avoado, mas agora, com ondas históricas de calor no inverno, parece que ele tinha razão.
Certa vez o italiano escreveu que um clássico “tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo”.
Autora de “Cara paz” (Nós, 2023), a italiana Lisa Ginzburg acredita que Calvino seria o melhor candidato para dar tratamento literário ao “barulho de fundo” mais ensurdecedor de nossos dias: a “angústia” causada pelas mudanças climáticas. Textos de juventude, como “A formiga argentina” e os contos de “Por último vem o corvo”, mostram um autor consciente do “poder absoluto” da natureza, diz ela.
Calvino era filho de um agrônomo e de uma botânica e chegou a iniciar o curso de agronomia. “A salvação da natureza é uma questão da civilização”, afirmou em uma entrevista.
Lisa gosta sobretudo das primeiras obras de Calvino, escritas sob o impacto da guerra, nas quais irrompe o lado mais “emocional” do autor, que depois passou a escrever de “cabeça fria” e desenvolveu uma “capacidade quase geométrica” de fabulação literária.
Ela o chama de “o mais lúcido” dos escritores italianos. E fala com propriedade, pois nasceu em uma família conhecida pela lucidez: é filha do historiador Carlo Ginzburg e neta da romancista Natalia Ginzburg, que trabalhou com Calvino na editora Einaudi. Ainda menina, ela o encontrou algumas vezes na casa da avó.
— Calvino era muito tímido. Mas as crianças amam pessoas tímidas — recorda ela, hoje com 56 anos. — Era muito agradável e íntegro. Nunca quis o sucesso fácil. Tenho a impressão de que escolhia muito bem o que amava.
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