sábado, outubro 21

Jack Chase

A primeira noite fora do porto foi iluminada, de luar; e a fragata deslizou pelas águas com todas as suas baterias.

Era meu quarto de vigia na gávea; e ali me acomodei da melhor maneira possível, tendo comigo meus companheiros de posto. Dos demais marinheiros, nada sei; esse, porém, era um nobre grupo de marujos, certamente digno da apresentação ao leitor.

Acima de todos, estava Jack Chase, nosso valoroso primeiro capitão da gávea. Ele era britânico e o mais confiável dos homens; alto, sólido e forte, de olhos claros e bem abertos, uma bela testa larga e uma farta barba castanha. Homem algum jamais teve coração maior ou mais cheio de coragem. Era querido pelos marinheiros e admirado pelos oficiais; e, mesmo quando o capitão lhe falava, ouvia-se em sua voz um leve ar de respeito. Jack era um homem franco e fascinante.

Não se podia ter melhor companhia, fosse no castelo de proa, fosse num bar; nenhum outro homem lhe contaria histórias como as dele ou cantaria como ele; tampouco demonstraria tamanha prontidão no cumprimento de sua função. De fato, só lhe faltava uma coisa — um dedo da mão esquerda, dedo que perdera na grande Batalha de Navarino.

Ele tinha em elevada conta a profissão de marujo; e, sendo profundamente versado em todas as coisas relativas a um navio de guerra, todos, sem exceção, encontravam nele um oráculo. A gávea do mastro principal, a qual presidia, era uma sorte de oráculo de Delfos; ao qual muitos peregrinos ascendiam com o intuito de dirimir diferenças e dificuldades.

Tão abundante era o ar de simpatia e bom senso que emanava daquele homem que não gostar dele era o mesmo que se declarar um rematado mau-caráter. Eu agradecia aos céus a bela dádiva de terem me colocado ao seu lado (ainda que abaixo) na fragata; e desde o início Jack e eu nos fizemos amigos leais.

Onde quer que esteja agora, querido Jack, singrando o azul das ondas, leve consigo minha mais alta estima; e que Deus o abençoe aonde quer que vá!

Jack era um cavalheiro. Se sua mão era calejada, o mesmo não se podia dizer de seu coração, como sói aos que têm as palmas delicadas. Seus modos eram leves e tranquilos; nada da violência intempestiva, tão comum nas gentes do mar; era com educação e cortesia que ele se dirigia a você, ainda que fosse apenas para pedir-lhe de empréstimo a faca. Jack conhecia toda a poesia de Byron e toda a prosa de Scott; conversava sobre Rob Roy, Don Juan e Pelham, Macbeth e Ulisses; mas, acima de tudo, era ardente apreciador de Camões. Era capaz de declamar trechos inteiros de Os lusíadas no original. Onde obtivera tão maravilhosos saberes, não cabe a mim, seu humilde subordinado, dizê-lo. Basta afirmar que eram tantos seus conhecimentos, e tantas as línguas em que travava conversa, que a ele mais do que cabia a frase de Carlos v: “vale por cinco homens aquele que fala cinco línguas”. Mas Jack era melhor do que cem meros mortais; Jack era uma falange, um exército inteiro; tinha a força de mil; Jack estaria à altura da sala de estar da rainha da Inglaterra; Jack deve ter sido filho da aventura de algum almirante inglês da Esquadra Azul. Mais belo exemplo da raça insular dos ingleses não poderia ter sido encontrado na abadia de Westminster num dia de coroação.

Sua postura como um todo contrastava fortemente com a de um dos capitães da gávea de proa. Tal homem, embora marujo competente, era um bom exemplo daqueles ingleses insuportáveis que, preferindo por residência outros países ao seu, ainda assim nos fartam com toda a arrogância de suas vaidades nacionais e individuais combinadas. “Quando estava a bordo do Audacious” — por um bom tempo, esse foi quase que invariavelmente o preâmbulo dos mais ligeiros comentários do homem. Não raro é costume da marujada dos navios de guerra, quando creem que alguma coisa vai mal a bordo do navio, referir-se à última viagem que fizeram quando, é claro, tudo se mostrara “na mais imaculada ordem, digna de Bristol”. E, referindo-se ao Audacious (nome bastante expressivo, a propósito), o capitão da gávea de proa remontava a um navio da Marinha britânica no qual tivera a honra de servir. Tão sucessivas eram suas alusões àquela embarcação de tão amistoso nome que, por fim, consolidou-se entre a marujada a opinião de que o Audacious era um verdadeiro tédio. Numa tarde quente, durante uma calmaria, quando o capitão da gávea de proa, a exemplo de muitos outros, estava desocupado e bocejando no espardeque, Jack Chase, seu conterrâneo, aproximou-se dele e, apontando a sua boca aberta, perguntou-lhe educadamente se era daquele modo que se capturavam moscas no navio de Sua Majestade britânica, o Audacious. Depois disso, nunca mais ouvimos falar de tal embarcação.

As gáveas de uma fragata são bastante espaçosas e confortáveis. Na parte de trás, são providas de um cercado que as transforma numa espécie de varanda, bastante agradável para uma noite tropical. De vinte a trinta convivas poderiam estar ali confortavelmente reclinados sobre velas sem uso e jaquetas. Tivemos ótimos momentos naquela gávea. Tínhamo-nos em própria conta como os melhores marinheiros do navio; e das alturas de nosso ninho etéreo literalmente olhávamos de cima os renegados abaixo de nós, esgueirando-se pelo convés em meio aos canhões.

De maneira geral, alimentávamos aquele sentimento de esprit de corps, sempre presente, em maior ou menor medida, nos vários segmentos da tripulação de uma fragata. Nós, homens da gávea principal, éramos sem qualquer reserva irmãos, empenhando-nos uns pelos outros com toda a liberdade do mundo.

Não demorei a descobrir, contudo, sendo membro dessa fraternidade de gentis amigos, que Jack Chase, nosso capitão, tinha — como é próprio aos oráculos, bem como aos preferidos de toda a gente — o que o assemelhasse aos ditadores; não por intransigência ou perversidade, mas pelo curioso interesse egoísta de emendar-nos os modos e sofisticar-nos o gosto, o que fazia para que pudéssemos conferir crédito ao nosso tutor.

Ele fazia com que todos usássemos nossos chapéus em certa inclinação, instruía-nos quanto ao laço de nossos lenços de pescoço e ralhava contra as vulgares calças de brim; além de nos dar lições náuticas e solenemente suplicar-nos que jamais aceitássemos a companhia de qualquer marinheiro que suspeitássemos ter servido em navio baleeiro. Cultivava contra todos os baleeiros, de fato, a mais absoluta aversão, de um verdadeiro marinheiro de navio de guerra — como o pobre Tubbs bem sabia.

Tubbs pertencia à guarda de popa. Era alto e esguio, natural de Martha’s Vineyard; e falava sem parar de ostagas, Nantucket, espermacete, Japão e botes avariados. Nada parecia capaz de silenciá-lo; e suas comparações eram invariavelmente ofensivas.

Pois bem, Jack abominava Tubbs do mais profundo de sua alma. Dizia ser vulgar, arrivista — o Diabo que o carregue, Tubbs já serviu num navio baleeiro. Mas, como muitos homens que estiveram onde você jamais esteve, ou viram o que você jamais viu, Tubbs, no que acercava suas experiências baleeiras, afetava absoluto desprezo por Jack, como Jack por ele; e era isso que tanto enervava nosso nobre capitão.

Certa noite, com alguma malícia no olhar, Jack ordenou que eu descesse e convidasse Tubbs à gávea para uma conversa. Lisonjeado por tamanha honra — pois éramos de certa forma desdenhosos, e não estendíamos convites a todos —, Tubbs rapidamente subiu pelo cordame, parecendo um tanto incomodado ao ver-se na augusta presença dos homens do quarto de vigília da gávea principal. Os modos corteses de Jack logo lhe aliviaram o constrangimento; porém, para alguns tipos deste mundo é simplesmente inútil ser cortês. Tubbs pertencia a essa categoria de homem. Tão logo o palhaço viu-se à vontade, lançou-se, como de costume, aos mais extraordinários elogios aos baleeiros; declarando que apenas os baleeiros mereciam o nome de marinheiros. Jack aguentou por algum tempo; mas quando Tubbs passou às críticas contra os navios de guerra e, em especial, contra os homens da gávea grande, aquilo foi tão aviltante e descabido que Jack avançou contra Tubbs como a bala de um canhão.

“Ora, seu nantucketense pretensioso! Saco de banha de baleia! Comedor de carniça! Você quer rebaixar um navio de guerra? Ora, seu tipinho à toa, um navio de guerra está para um baleeiro como uma metrópole para uma cidadezinha, para um vilarejo de fim de mundo. Este, sim, é o lugar da vida e da aventura; este é o lugar de ser cortês e alegre. E o que você conhecia dessas coisas, seu palhaço, antes de vir a bordo? O que você sabia da coberta dos canhões, ou da coberta das macas, ou da revista ao redor do cabrestante, ou dos exercícios de posto, ou do apito para o jantar? Você já havia sido convocado ao grogue, sua bola de banha fervente? Já havia passado o inverno em Maó? Sabia o que era ‘amarrar e guardar’? Ora, de que valem as ladainhas de um marinheiro mercante em viagem à China atrás de chá, ou às Índias atrás de açúcar, e às Shetlands atrás de pele de foca… de que valem essas ladainhas, Tubbs, perto da vida elevada de um navio de guerra? Ora, sua bigota! Naveguei com lordes e marqueses no comando; e o rei das Duas Sicílias passou por mim, eu de pé ao lado do meu canhão. Bah! Você está cheio de piques de vante e de castelos de proa; conhece mesmo só ganchos e talhas; sua ambição jamais passou da matança de porcos, que, em minha opinião, é o que melhor define a caça à baleia! Marinheiros de topo, digam-me se este Tubbs não passa de uma afronta a estas boas tábuas de carvalho, um vil profanador deste mar três vezes sagrado, quando transforma seu navio, meus caros, num caldeirão de banha, e o oceano num chiqueiro de baleias? Saia, desgraçado, canalha sem Deus! Atire-o para longe da gávea, Jaqueta Branca!”

Mas não precisei me empenhar. Tubbs, perplexo diante de tamanha explosão, já descia rapidamente pelo cordame.

Esse arroubo da parte de meu nobre amigo Jack me fez tremer, a despeito de meu traje forrado; e me levou a erguer os olhos devotos aos céus por não ter, em má hora, divulgado o fato de eu próprio ter servido num navio baleeiro; pois, tendo previamente observado o preconceito dos homens de fragata em relação àquela muito envilecida categoria de marinheiros, sabiamente me contive no tocante a botes avariados na costa do Japão.
Herman Melville, "Jaqueta Branca"

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