domingo, outubro 15

Cesariny, Rock Star

Mário Cesariny tinha jeito de uma autêntica estrela rock da poesia nacional. Talvez a única. Certamente a única que assinou uma obra de tão extrema qualidade nunca se prejudicando pela excentricidade ou exagero do aparato teatral que montava pessoalmente.

Claro que era porque nos comovia com os seus poemas, mas que pudesse conseguir aquela profundidade e, ao mesmo tempo, se mantivesse como um espírito terrível, indisciplinado e exercendo o surrealismo contra toda a hipocrisia, era o que aumentava o fascínio. Mário Cesariny tinha jeito de uma autêntica estrela rock da poesia nacional. Talvez a única. Certamente a única que assinou uma obra de tão extrema qualidade nunca se prejudicando pela excentricidade ou exagero do aparato teatral que montava pessoalmente.

Tinha pouca paciência para eventos formais, já não queria entrevistas, gostava, contudo, de companhia. Divertia-se com as pessoas, queria ser visitado e falava em sair para jantar ou revisitar algum lugar que mostrasse pintura. Estava sempre a falar de gatos e também se relacionava com algumas pequenas pinturas em seu quarto como se fossem gatos. Eram companhia. Havia uma obra de Vieira da Silva e ele admirava-a com orgulho. Mostrava-a como alguém evidenciando a virtude dos filhos ou o garbo de um rosto mais belo. Na confusão barroca do seu quarto, tudo conspirava em seu redor como todos os objetos lhe fossem afeiçoados.

Fazia parte da sua excentricidade encontrar todas as visitas ali. Deixava-se mesmamente sentado na cama e fumava sorrindo ou rindo de tudo. Dizia que já não escrevia, encontrava escrito, porque tinha acabado de fazer umas colagens em que dispunha palavras. Procurava-as em revistas vulgares e não lhe era muito importante que compusessem grandes versos. Parecia-lhe sobretudo importante que dissessem alguma bizarria e resultassem como elementos de ver na página criada.

Contava que o primeiro-ministro lá passara, ou era o presidente, e que se tornava uma porcaria ter de receber prémios, porque não queria ir à Gulbenkian nem ao Museu Nacional de Arte Antiga. Se ganhara, que lhos viessem entregar ali, no mesmo quarto onde dormia, onde tudo era tumulto, um somatório material de sua vida, como se cada coisa ambicionasse a fusão com seu próprio corpo. Coroado ou constrangido por seus objetos, Cesariny criava-me a impressão de se metamorfosear. Era um velho homem mutante cujos versos podiam ser alguns dos mais belos versos que a nossa Língua alguma vez conheceu.

Falava por sumários. Tinha uma espécie de reserva arquivada para cada assunto, e quem lhe voltasse a perguntar, diria exatamente o mesmo. Já não elaborava, não precisava de esconder coisa alguma, era frontal e usava o que lhe interessava lembrar. Respondia invariavelmente que o melhor de todos eles era o António Maria Lisboa. Mas a impressão com que fiquei foi sempre a de uma paixão que não tinha que ver expressamente com a poesia. Curiosamente, o Cruzeiro Seixas tinha por Maria Lisboa o mesmo suspiro. Morrera-lhes o mais encantado dos escolhidos. Talvez parte do encanto viesse de não estar ali e não ter assistido à peripécia heróica da vida de alguns deles. Não estava mais, podia também significar que se tinha furtado a tanto engodo, tanta zanga e verso que, afinal, não impediram que todos envelhecessem e se vissem como animais magoados. Debilitados com suas medicações na mão para resistir a mais um dia.

Cesariny, de todo o modo, não citava constantemente. Era sucinto, portava-se como se tudo lhe roubasse a atenção e mudasse a direção a cada par de segundos. Para o acompanharmos, tínhamos de ir à aventura. Jamais saberíamos o ponto de chegada. Era demasiado à sorte e também porque gostava de não ter consequência. Mas nada era um disparate. Tudo servia para catar beleza, notar o deslumbre, ficar grato para mais um instante em que se confirmava a simples existência de uma moça ou um moço bonitos. Um luz qualquer do céu. Os saltos dos bichos pelas ruas. Os pássaros que por vezes vinham perto. Como nos filmes, divertia-se a gostar dessas coisas. E achava certamente burro que nós, mais novos, não falássemos dessas coisas também.

De tudo quanto lhe reconheço, o que mais me enternecia era a forma como atirava para os outros qualquer lisonja. Tratado como um génio, constantemente adorado e celebrado, talvez soubesse tão perfeitamente o seu valor que não precisasse de ser ele a afirmá-lo. Elogiava os outros. Usava qualquer coisa que lhe disséssemos para evocar outro nome, repartindo ou atribuindo o mérito por inteiro a outro artista, outro criador. Neste sentido, a figura jocosa que criava, um certo gozão imparável, não passava como reclamando o lugar do nobre. Muito ao contrário. A sua natureza era periférica, de contra-poder, de contra-cultura, aburguesava o elementar para o corpo, mas jamais a consciência. No que respeita à consciência, preferia estar livre até da bajulação, livre da glória. Queria ser um homem de visões fortes, paixões fortes, preferia dizer foder do que dizer bom dia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário