Nas caladas noites de Inverno, quando despego o olhar dos papéis, encontro sempre os teus que me envolvem de ternura . Isto é quase nada - e revolve o mundo. É saudade , e a vida que passa e a morte que se aproxima, enquanto o tronco arde no lume , o pinheiro estala ou o carvalho amorroa. De fora, vem o hálito da floresta e das águas. Mais silêncio… Surpreendo-me então a repetir o meu pensamento, ou é o teu que me acode ao mesmo tempo. Não fales! Outra figura transparece atrás da tua figura. Nesse momento até o lume parece encantado e ficas tão linda que antevejo a vida misteriosa que me fascina e deslumbra. Isto só dura um segundo. Mas basta às vezes que sorrias e é a tua alma que sorri, basta ás vezes que não fales e é a tua alma que me fala! Nesse momento somos um ser: eu sou tu , tu és eu, tu sorris, eu sorrio… Então cai sobre nós o silêncio - e eu descubro o que só nos é dado ver depois da morte, a amplidão das almas, seu poder mágico e, num deslumbramento, ao lado da existência pueril, a imensidade do universo e o infinito que nos rodeia e de que perdemos a sensação pelo hábito. A casa que tem raízes de granito, voga no éter arrastada num turbilhão que me mete medo… Alguém nos vai bater à porta … Alguém se aproxima pouco e pouco num cerco que se aperta e em passos tão leves que mal se ouvem.
Rodeia -nos o silêncio vivo, alma do mundo, o silêncio que é talvez o que mais amo na aldeia, este silêncio perfumado que envolve a nossa casa na solidão tremenda da noite: mais perto de mim arfa alguma coisa de religioso e profundo: - sinto a Vida e a Morte. Sinto—as enquanto a última brasa se apaga e as tuas mãos se agarram às minhas mãos de velho.
Raul Brandão, "Se tivesse de recomeçar a vida"
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