quinta-feira, outubro 26

Jikininki

Certa vez, quando o monge zen-budista Musō Kokushi viajava sozinho pela província de Mino, ele se perdeu num distrito nas montanhas e não havia ninguém para orientá-lo. Por muito tempo ele vagou, desamparado; estava prestes a perder as esperanças de encontrar um local para passar a noite quando notou, no alto de um morro onde se refletiam os últimos raios de sol, um pequeno eremitério, um anjitsu, do tipo construído para monges solitários. Parecia em ruínas, mas ele correu até lá, ansioso, e viu que era habitado por um velho monge, a quem implorou que o abrigasse aquela noite, embora não pudesse oferecer nada em troca. O velho foi inflexível em sua recusa, mas indicou a Musō o caminho até uma aldeia vizinha, onde ele poderia encontrar comida e hospedagem.

Musō conseguiu encontrar a aldeia, constituída de menos de doze casinhas de campo, e foi gentilmente acolhido pelo chefe do lugar. Quando chegou à casa dele, havia quarenta ou cinquenta pessoas reunidas no aposento principal, e o monge foi conduzido a um pequeno quarto ao lado, onde logo lhe providenciaram comida e cama. Estava muito cansado, então ainda cedo deitou para descansar; pouco antes da meia-noite, porém, foi acordado pelo som de um choro copioso no aposento vizinho. Na mesma hora, alguém deslizou com suavidade as portas entre os cômodos; e um rapaz jovem, segurando uma lanterna acesa, entrou e, respeitoso, saudou o hóspede dizendo:

— Venerável senhor, é com pesar que devo lhe dizer que agora sou o responsável por esta casa. Ainda ontem, eu era apenas o primogênito. Mas ao ver o senhor chegar tão cansado, não quisemos lhe provocar um constrangimento, portanto não contamos ao senhor que meu pai tinha morrido havia apenas poucas horas. As pessoas que o senhor viu são os habitantes do povoado: se reuniram para prestar as últimas homenagens ao morto e agora seguem rumo a outra aldeia, a cerca de cinco quilômetros daqui, pois, pelos nossos costumes, nenhum de nós deve permanecer na aldeia na noite em que alguém tenha morrido. Fazemos as oferendas e preces apropriadas, e então partimos, deixando o cadáver sozinho. Coisas estranhas sempre acontecem na casa em que um cadáver é abandonado, por isso pensamos que seria melhor o senhor nos acompanhar. Podemos lhe encontrar uma boa hospedagem em outra aldeia. Talvez, porém, o senhor não tema os demônios ou maus espíritos, já que é um monge; se por acaso não tiver medo de permanecer a sós com o cadáver, pode ficar à vontade para dispor desta pobre casa. No entanto, devo lhe dizer que ninguém, a não ser um monge, ousaria permanecer aqui esta noite.

Musō respondeu:

— Sou profundamente grato por sua boa intenção e generosa hospitalidade. Sinto muito, no entanto, que não tenham me informado antes da morte de seu pai; ainda que estivesse um pouco cansado, com certeza não teria dificuldade em exercer meus deveres de monge. Se tivesse me contado, eu poderia ter efetuado a cerimônia antes da partida de vocês. Agora irei realizá-la depois que saírem; e permanecerei ao lado do corpo até o amanhecer. Não entendo o que você quer dizer quanto aos perigos de ficar aqui; mas não tenho medo de fantasmas nem demônios, portanto, por favor não se aflija por minha pessoa.


O jovem rapaz pareceu satisfeito com essas palavras confiantes e exprimiu sua gratidão de modo adequado. Então os membros da família e todas as pessoas reunidas na casa, ao saber das gentis promessas do monge, vieram lhe agradecer — e, em seguida, o mestre da casa falou:

— Agora, venerável senhor, embora seja com grande pesar que o deixamos sozinho, precisamos nos despedir. Pela lei de nossa aldeia, nenhum de nós pode permanecer aqui depois da meia-noite. Imploramos, gentil senhor, que tome todos os cuidados com sua honrosa presença, nesse momento em que não podemos auxiliá-lo. E, se acaso escutar ou vir algo de estranho em nossa ausência, por favor nos relate quando voltarmos pela manhã.

E assim todos saíram da casa, com exceção do monge, que seguiu para o quarto onde estava o corpo. Todas as oferendas habituais haviam sido dispostas diante do morto; e uma pequena lamparina budista, tōmyō, estava acesa. O monge fez a recitação ritual, cumpriu com as cerimônias funerárias e, em seguida, entrou em meditação. Permaneceu assim, meditando por muitas horas silenciosas; e toda a aldeia estava deserta e tudo era silêncio. Mas na mais profunda noite e no quieto absoluto, uma Forma vaga e vasta apareceu, sem se fazer ouvir; e no mesmo instante Musō percebeu que não conseguia mais se mexer nem falar. Viu que a Forma levantou o cadáver, como se tivesse mãos, e o devorou, mais rápido do que um gato devora um rato — começou pela cabeça e continuou até comer tudo: cabelo, ossos e até a mortalha. E a Coisa monstruosa, tendo então consumido o corpo, voltou-se para as oferendas e também as engoliu. E então se foi, tão misteriosamente como havia vindo.

Quando os habitantes da aldeia voltaram na manhã seguinte, encontraram o monge na entrada da casa do chefe. Cada um deles o cumprimentou; e, quando entraram e olharam em volta, ninguém demonstrou surpresa com o desaparecimento do corpo e das oferendas. Mas o mestre da casa disse a Musō:

— Venerável monge, o senhor decerto viu coisas desagradáveis na noite passada: todos nós estávamos aflitos por sua pessoa. Mas agora estamos muito contentes de ver que sobreviveu ileso. Se não fosse impossível, nós o teríamos acompanhado com prazer. Mas a lei de nossa aldeia, como lhe disse ontem à noite, nos obriga a abandonar nossas casas quando alguém morre, e a deixar o cadáver a sós. Todas as vezes em que essa lei foi quebrada, seguiu-se uma grande desgraça. Toda vez em que ela é obedecida, o cadáver e as oferendas desaparecem em nossa ausência. Talvez o senhor tenha visto a causa disso.

Então Musō falou da Forma terrível e escura que havia entrado na sala mortuária para devorar o corpo e as oferendas. Ninguém pareceu estranhar a história, e o mestre da casa observou:

— Isso que nos conta, venerável senhor, está de acordo com o que já se falou a esse respeito em tempos ancestrais.

Musō então perguntou:

— O monge que vive na montanha às vezes não vem aqui realizar os rituais funerários para os mortos?

— Qual monge? — perguntou o jovem.

— O que me indicou o caminho para cá ontem à noite — respondeu Musō. — Bati à porta de seu anjitsu, no morro logo ali. Ele me negou hospedagem, mas indicou o caminho até aqui.

Os ouvintes se entreolharam, espantados; depois de um instante de silêncio, o mestre da casa falou:

— Venerável senhor, não há monge nem anjitsu na montanha. Há muitas gerações não temos um sacerdote residente na região.

Musō não disse mais nada; tinha ficado claro que seus gentis hóspedes supunham que ele havia sido iludido por um goblin. Depois de se despedir, e tendo obtido todas as informações acerca de qual caminho seguir, ele decidiu procurar de novo o eremitério na montanha, para averiguar se de fato havia sido enganado. Sem dificuldade encontrou o anjitsu, e agora seu velho habitante o convidou a entrar. Uma vez dentro, o ermitão curvou-se humilde, em reverência, dizendo:

— Ah, que vergonha! Estou muito envergonhado! Estou profundamente envergonhado!

— Não precisa sentir vergonha por ter me recusado hospedagem — disse Musō. — Você me indicou o caminho para a aldeia, onde fui muito bem tratado; e eu o agradeço por isso.

— Não posso oferecer hospedagem a quem quer que seja — respondeu o recluso —, e não é isso o que me vexa. Sinto vergonha apenas por você ter me visto em minha forma verdadeira, pois fui eu que engoli o cadáver e as oferendas ontem à noite, diante de seus olhos... Saiba, venerável senhor, que sou um jikininki * e como carne humana. Tenha piedade de mim e aceite escutar a confissão do mal secreto que me reduziu a esse estado.

“Há muito tempo, eu era o monge desta região abandonada. Não havia outro senão eu, por muitas e muitas léguas. Naquela época, os corpos da gente que morria nas montanhas costumavam ser trazidos até aqui — às vezes, vinham de grandes distâncias — para que eu lhes pudesse recitar os rituais sagrados. Mas eu recitava e concluía os rituais apenas como uma obrigação — só pensava na comida e nas roupas que poderia angariar às custas de minha profissão sagrada. E por causa de meu egoísmo impiedoso, assim que morri renasci na condição de jikininki. Desde então, vejo-me obrigado a me alimentar dos cadáveres d
as pessoas que morrem neste distrito: preciso devorar cada um da maneira como me viu fazer ontem... Agora, venerável senhor, permita que eu lhe peça para realizar um ritual de Segaki por mim: me ajude com suas preces, eu lhe imploro, para que eu possa escapar logo dessa terrível existência...”

Tão logo o eremita fez o pedido, ele desapareceu e o eremitério sumiu junto. E Musō Kokushi se viu sozinho, ajoelhado em meio ao capim alto, ao lado de um antigo túmulo coberto de musgo, no formato go-rin-ishi; aparentemente, o túmulo de um monge.
Lafcadio Hearn, "Kwaidan: contos fantásticos do Japão antigo"

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