O alemão começou a segui-la insistentemente, oferecendo-lhe garantias de segurança e também a seus amigos — que ele decerto sabia pertencerem à resistência — caso ela se rendesse a seus apelos. Aos poucos, ela fez que ia cedendo, tudo para finalmente emboscá-lo num encontro em que o oficial apaixonado acreditava que os dois iriam planejar uma fuga, apenas para que seus camaradas da resistência pudessem mirá-lo com precisão e matá-lo. O plano e sua execução seguem uma estratégia tão precisa e a sensação de vitória dela e dos amigos, ainda que mínima, é tão contagiante, que não resta ao leitor futuro mais do que sonhar que estivesse também ali, participando da pequena revolta contra o imponderável.
Entretanto, embora parecendo se esmerar nos detalhes, Marguerite Duras silencia sobre algo que, ao menos para leitores brasileiros, é extremamente relevante: entre seus camaradas, estava ninguém menos do que Rubem Braga. É claro, a autobiografia é dela, é de si mesma que está falando, e não há como nem por que ela declarar os nomes de todos os colegas que tiveram parte nesse plano.
É bem conhecido que Rubem Braga foi jornalista e cobriu ativamente o envolvimento do Exército brasileiro nas batalhas italianas. Mas, quando podia, em seus momentos de folga, Braga ia também a outros lugares, entre eles Paris. E foi lá, em 1944, quando, mesmo já próximo do final da guerra, o nazismo recrudescia terrivelmente, que Braga conheceu Duras — nada se sabe sobre algum namoro entre eles, embora tudo conspire para que, sim, os dois tenham tido algum envolvimento (ao menos eu daria tudo para que assim tenha acontecido) — e pôde ajudá-la a realizar seu plano. É claro que Braga jamais contaria isso a alguém, muito menos publicamente, já que uma de suas características mais conhecidas — e mais elogiáveis — era a extrema humildade. Além do mais, cabia apenas a ela narrar algo dessa natureza, extremamente íntimo e possivelmente condenável.
Quem acabou por me relatar essa história, depois que confessei que eu mesma gostaria de ter estado no lugar de Duras, foi uma tia de Joana, a mulher a quem Braga costumava dedicar várias das crônicas publicadas na coluna “Ordem do Dia”, que saía por aquela época no Diário Carioca e que era, folclórica mas também verdadeiramente, uma das namoradas do cronista. Eu a conheci por acaso, quando estive uma vez, há não muito tempo, em Fortaleza. Uma senhora simpática e já idosa, que mais nada tinha a perder se me contasse essa curiosidade, como ela disse. Preciso confessar que nem fiquei tão surpresa. Não podia esperar nada menos do que isso de Rubem Braga, um dos maiores de nossa literatura — sem dúvida o maior cronista — e também uma das criaturas de alma grande que já viveram no país.
Desde logo, Braga nunca fez segredo de sua posição contrária à política getulista e fez advertências precoces sobre o nazismo:
“Não temos dois caminhos a seguir. Nossa tarefa é clara: ajudar a arrebentar a máquina monstruosa do nazismo, ameaça ao Brasil e ao mundo. Isso é o essencial, é o urgente — é a um só tempo a necessidade, a honra e o dever. A estupidez nazista já se encarregou de vir até nós fazer demonstrações frias e covardes de si mesma. […] Unamo-nos para a guerra.”
De forma inclusive discutível, e que até lhe rendeu inimigos, Braga foi francamente favorável à participação dos pracinhas na guerra mundial.
Numa de suas crônicas, o autor confessa ter inveja dos jovens soldados brasileiros que iriam à guerra e como ele mesmo gostaria de estar em seu lugar. Talvez tenha sido esse o motivo que o fez ajudar Duras, não sabemos.
A nonagenária tia de Joana, embora temerosa, concedeu em me mostrar rapidamente uma carta escrita por Braga e endereçada a Duras. Fiquei tão nervosa com o inusitado da coisa que a vista embaçou e não consegui reter todas as palavras, mas lembro de algumas frases — embora não possa atestar sua veracidade, muito contaminada pela emoção. Logo ao sair, anotei num papel qualquer o que pude lembrar.
Havia passagens assim: “E por ser impessoal e não ter pressa nem rumo, por ter um capote e sapatos grossos e por andar entre meus desconhecidos irmãos, eu me senti mais livre. E cumpri os ritos da multidão, comprei meu jornal, tomei meu café, li o placar das últimas notícias, fiquei um instante distraído mirando os frangos que giravam se tostando numa rotisseria”. E esta outra: “Outro dia vi uma linda mulher, e senti um entusiasmo grande, uma vontade de conhecer mais aquela bela estrangeira: conversamos muito, essa primeira conversa longa em que a gente vai jogando um baralho meio marcado, e anda devagar, como a patrulha que faz um reconhecimento. Mas por quê, para quê, essa eterna curiosidade, essa fome de outros corpos e outras almas?”. Ou ainda, e aqui, creio que ele assentia em tomar parte da empreitada com ela: “Eu disse apenas, humilde: ‘Prometo’. E então pela primeira vez em muitos e muitos anos de longas noites, eu pude adormecer sorrindo, porque meu coração era puro como o de um menino”.
Não coube a Braga nem a Duras legar essa história à posteridade. Para Duras, deve ter se tratado de mais um entre tantos que tiveram a alegria passageira de participar dessa operação. Para Braga, depois de tudo o que ele já havia testemunhado na Itália, tantos gestos nobres por meninos bem mais jovens do que ele, não se tratava de algo a ser relatado ou de que se gabar. Mas para a tia de Joana e para mim, que não temos sapatos grossos nem um capote, e que não andamos entre desconhecidos irmãos, Rubem Braga nos fez sentir mais livres, um pouco que seja.
Noemi Jaffe, "Não está mais aqui quem falou"
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