Certo sábado, fomos ao vilarejo de Fide fazer uma visita. Sua mãe nos mostrou um cesto de palha pintado com uns desenhos lindos que o irmão dele tinha feito. Fiquei espantada. Não havia me ocorrido que alguém naquela família pudesse fazer alguma coisa. Eu só tinha ouvido falar sobre como eram pobres, então ficou impossível para mim vê-los como qualquer coisa além de pobres. A pobreza era minha história única deles.
Anos depois, pensei nisso quando saí da Nigéria para fazer faculdade nos Estados Unidos. Eu tinha dezenove anos. Minha colega de quarto americana ficou chocada comigo. Ela perguntou onde eu tinha aprendido a falar inglês tão bem e ficou confusa quando respondi que a língua oficial da Nigéria era o inglês. Também perguntou se podia ouvir o que chamou de minha “música tribal”, e ficou muito decepcionada quando mostrei minha fita da Mariah Carey. Ela também presumiu que eu não sabia como usar um fogão.
O que me impressionou foi: ela já sentia pena de mim antes de me conhecer. Sua postura preestabelecida em relação a mim, como africana, era uma espécie de pena condescendente e bem-intencionada. Minha colega de quarto tinha uma história única da África: uma história única de catástrofe. Naquela história única não havia possibilidade de africanos serem parecidos com ela de nenhuma maneira; não havia possibilidade de qualquer sentimento mais complexo que pena; não havia possibilidade de uma conexão entre dois seres humanos iguais.
Devo dizer que, antes de ir para os Estados Unidos, eu não me reconhecia conscientemente como africana. Mas, naquele país, sempre que a África era mencionada, as pessoas se voltavam para mim. Não importava que eu não soubesse nada sobre lugares como a Namíbia. Passei a aceitar essa identidade e, de muitas formas, agora penso em mim como africana, embora ainda fique bastante irritada quando dizem que a África é um país. O exemplo mais recente disso foi num voo da Virgin, maravilhoso em todos os outros aspectos, que peguei em Lagos dois dias atrás, durante o qual falaram de obras de caridade feitas “na Índia, na África e em outros países”.
Depois que passei alguns anos nos Estados Unidos como africana, comecei a entender a reação da minha colega de quarto em relação a mim. Se eu não tivesse crescido na Nigéria e se tudo o que eu soubesse sobre a África viesse das imagens populares, também ia achar que se tratava de um lugar com paisagens maravilhosas, animais lindos e pessoas incompreensíveis travando guerras sem sentido, morrendo de pobreza e de aids, incapazes de falar por si mesmas e esperando para serem salvas por um estrangeiro branco e bondoso. Veria os africanos da mesma maneira como eu via a família de Fide quando era criança.
Acho que essa história única da África veio, no final das contas, da literatura ocidental. Aqui está uma citação de um mercador de Londres chamado John Lok, que velejou para a África ocidental em 1561 e fez um relato fascinante de sua viagem. Após se referir aos africanos negros como “animais que não têm casa”, ele escreveu: “Também é um povo sem cabeça, com a boca e os olhos no peito”.
Rio toda vez que leio isso. É preciso admirar a imaginação de John Lok. Mas o importante sobre o que ele escreveu é que representa o início de uma tradição de contar histórias sobre a África no Ocidente: uma tradição da África subsaariana como um lugar negativo, de diferenças, de escuridão, de pessoas que, nas palavras do maravilhoso poeta Rudyard Kipling, são “metade demônio, metade criança”.
Assim, comecei a me dar conta de que minha colega de quarto americana devia ter passado a vida inteira vendo e ouvindo versões diferentes dessa história única, assim como um professor universitário que certa vez me disse que meu romance não era “autenticamente africano”.
Eu estava bastante disposta a admitir que havia diversas coisas erradas com o romance e que ele fracassava em vários aspectos, mas não chegara a imaginar que fracassava em alcançar algo chamado “autenticidade africana”. Na verdade, eu não sabia o que era autenticidade africana. O professor me disse que meus personagens pareciam demais com ele próprio, um homem instruído de classe média: eles dirigiam carros, não estavam passando fome; portanto, não eram autenticamente africanos.
Mas preciso acrescentar depressa que sou tão culpada quanto essas pessoas na questão da história única. Alguns anos atrás, fui visitar o México. Na época, o clima político nos Estados Unidos, de onde eu vinha, estava tenso, e debatia-se muito a imigração. Como costuma acontecer nos Estados Unidos, imigração tinha se tornado sinônimo de mexicanos. Havia histórias infindáveis sobre pessoas que fraudavam o sistema de saúde, passavam clandestinamente pela fronteira ou eram presas ali, esse tipo de coisa. Eu me lembro de sair para passear no meu primeiro dia em Guadalajara e ver as pessoas indo para o trabalho, fazendo tortilhas no mercado, fumando, rindo. Primeiro senti uma leve surpresa, e então fui tomada pela vergonha. Percebi que tinha estado tão mergulhada na cobertura da mídia sobre os mexicanos que eles haviam se tornado uma só coisa na minha mente: o imigrante abjeto. Eu tinha acreditado na história única dos mexicanos e fiquei morrendo de vergonha daquilo.
É assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma coisa, uma coisa só, sem parar, e é isso que esse povo se torna.
Chimamanda Ngozi Adichie, "O perigo de uma história única"
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