Hoje, quando vejo crianças abandonadas e em total desgraça, e cães serem tratados com regalias de príncipes ou de políticos, minha descrença na humanidade tende ao infinito. Mas essa não é uma crônica sobre o niilismo, e sim sobre um vira-lata que assombrou minha infância.
Eu não sentia um apego especial por esse bicho, nem pelos macacos e araras do quintal do meu vizinho, preferia brincar no porão da casa dele, onde havia brinquedos fabulosos; um deles era o exército em miniatura de dois países que participaram da Primeira Guerra Mundial, um exército com soldadinhos de papel machê e toda a parafernália bélica. O pai do meu amigo conhecia muita coisa sobre essa guerra, tão distante no tempo e no espaço que parecia irreal. Aos sábados eu brincava com esse pai, que venerava o Exército prussiano e sua disciplina férrea; eu venerava o guaraná Tuchaua e a tapioquinha com queijo coalho da merenda da tarde. Às vezes, quando eu e o pai combatíamos em exércitos antagônicos, um uivo lamentoso interrompia nossa guerra, selando uma espécie de armistício. O dono ia atrás do seu cão, e assim terminava nossa brincadeira bélica.
Quando isso acontecia, eu me juntava ao meu amigo, que jogava baralho com sua mãe na varanda do andar de cima, de onde víamos o pai e o cão passeando no quintal. Mais de uma vez, entre um blefe e uma batida do carteado, ouvi a mãe dizer: “Detesto esse animal”.
Fly era o nome do vira-lata: um bicho feio, a orelha direita estropiada em alguma batalha de rua, o focinho grande demais na cabecinha achatada, pernas finas e tortas, e no traseiro um rabo tão atrofiado que parecia um toco. Mas Fly me cativava com seu olhar terno; não poucas vezes, quando ele ficava sozinho no quintal, à espera de seu dono que demorava a chegar, me olhava com uma expressão aflitiva de quem pede socorro. Isso é o que Fly tinha de mais humano, ou de menos bestial.
Numa noite de dezembro de 1962, o pai do meu amigo morreu subitamente. No meio da agitação dos festejos natalinos na minha casa e do luto na casa vizinha, não vi o cão. Pouco tempo depois da missa de sétimo dia, meu amigo e sua mãe foram de vez para o Rio. A casa mobiliada, mas trancada, ficou silenciosa.
Mais de um mês depois, na tarde triste da Quarta-feira de Cinzas, minha mãe me disse: “Tens que ver uma coisa”.
Entramos no jardim da casa abandonada e descemos uma estreita rampa de pedra que terminava no quintal dos fundos. O cubo de arame dos macacos, vazio; e as árvores, sem as araras, estavam quietas. Antes que minha mãe apontasse para o porão, vi Fly encostado na grade de ferro. O cão, que a mãe do meu amigo abandonara longe da casa, tinha voltado para rever seu dono. Agora Fly era uma carcaça, a ossada do focinho enganchada na grade. Um formigueiro da cor de fogo crescia na pelagem preta.
“Esse bichinho morreu de tanta saudade”, lamentou minha mãe.
Mais de quarenta anos depois, quando ela leu as primeiras frases de um romance que eu acabara de publicar, perguntou: “Esse cão do Cinzas do Norte não é o Fly, do nosso vizinho?”
“Ele mesmo”, respondi. “Mas com outro nome, outra vida e outro dono.”
“Conta outra”, ela disse. E, olhando para mim, sentenciou: “Tu podes enganar teus leitores, mas não tua mãe”.
Milton Hatoum, "Um solitário à espreita"
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