quinta-feira, julho 3

MCDONALD’S, 1973


   Então, morri. Não sei muito bem como. Talvez dormindo. Ou atravessando a rua. De uma coisa tenho certeza: meu projeto de chegar aos 85 anos naufragou. Não alcancei sequer a metade. Mas tudo bem. Morrer não me parece algo tão catastrófico. É apenas deixar de existir. Antes eu não estava aqui e o mundo seguia célere em suas loucuras diárias. Agora, seguirá da mesma maneira. Indiferente a menos um corpo a percorrer a rua deserta. É possível que eu sobreviva mais alguns anos. Poucas pessoas ainda irão se lembrar de mim com amor, ódio ou indiferença. Depois de um tempo, o esquecimento completo. Aí, estarei bem morto. Será rápido. Dúvida não há. Os testamentos e balanços de uma vida inteira sempre me pareceram ridículos. Mas quando se está morto, eles são inevitáveis.
     De bens materiais, deixo apenas meus livros. São de meus filhos. Não se preocupem com esta tranqueira toda — o farto banquete para traças gordas, larápias e mal-acostumadas. Estão livres para vender a um sebo (de boa qualidade, por favor) ou incinerar. Minha biblioteca dará uma bela fogueira. Há de calcinar todas as vaidades, principalmente as minhas, que de nada serviram em vida. Na morte, nada faz diferença. Os vermes se alimentam de carne; não de papel. Por sorte, tenho pouca carne a lhes oferecer. Se fartarão rapidamente. E me deixarão em paz com meus ossos na escuridão pacífica do caixão. Se fui magricela em vida, serei cadavérico em morte. Sempre é possível afinar a silhueta. As coleções — coisas banais como marcadores de páginas, postais, figurinhas de jogadores de futebol, canecas, miniaturas de garrafas e de carros —, enviem-nas à reciclagem. Minhas obsessões podem se transformar em algo menos inútil.
Leia mais o texto de Rogério Pereira

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