Então, morri. Não sei muito bem como. Talvez
dormindo. Ou atravessando a rua. De uma coisa tenho certeza: meu projeto de
chegar aos 85 anos naufragou. Não alcancei sequer a metade. Mas tudo bem. Morrer
não me parece algo tão catastrófico. É apenas deixar de existir. Antes eu não
estava aqui e o mundo seguia célere em suas loucuras diárias. Agora, seguirá da
mesma maneira. Indiferente a menos um corpo a percorrer a rua deserta. É
possível que eu sobreviva mais alguns anos. Poucas pessoas ainda irão se
lembrar de mim com amor, ódio ou indiferença. Depois de um tempo, o esquecimento
completo. Aí, estarei bem morto. Será rápido. Dúvida não há. Os testamentos e
balanços de uma vida inteira sempre me pareceram ridículos. Mas quando se está
morto, eles são inevitáveis.
Leia mais o texto de Rogério Pereira
De bens
materiais, deixo apenas meus livros. São de meus filhos. Não se preocupem com
esta tranqueira toda — o farto banquete para traças gordas, larápias e
mal-acostumadas. Estão livres para vender a um sebo (de boa qualidade, por
favor) ou incinerar. Minha biblioteca dará uma bela fogueira. Há de calcinar
todas as vaidades, principalmente as minhas, que de nada serviram em vida. Na
morte, nada faz diferença. Os vermes se alimentam de carne; não de papel. Por
sorte, tenho pouca carne a lhes oferecer. Se fartarão rapidamente. E me
deixarão em paz com meus ossos na escuridão pacífica do caixão. Se fui
magricela em vida, serei cadavérico em morte. Sempre é possível afinar a
silhueta. As coleções — coisas banais como marcadores de páginas, postais,
figurinhas de jogadores de futebol, canecas, miniaturas de garrafas e de carros
—, enviem-nas à reciclagem. Minhas obsessões podem se transformar em algo menos
inútil.
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