"Minhas duas fraquezas fundamentais: o tabaco e a leitura"Ernesto Che Guevara
Há tanta diferença entre a “atitude” de quem lê e a de quem
escreve? Um dos problemas cruciais do leitor e do escritor é a falta de tempo,
decorrente da pressão do dia-a-dia.
Os escritores que vivem de sua pena não podem escolher uma
hora do dia ou da noite para trabalhar. Mesmo os que tiveram ou têm a sorte de
não depender do trabalho da escrita, revelam-se compulsivos, ávidos para
narrar. O que deve ser escrito é inadiável. Deixar para escrever mais tarde,
amanhã ou outro dia qualquer só atrapalha o andamento da narrativa. Adiar um
trabalho pode ser um alívio para um burocrata, não para um escritor. Ainda
assim, há momentos de pausa e reflexão, de pesquisa e anotações, e, às vezes,
de interrupções forçadas, um verdadeiro castigo para quem escreve. E há também
pausas para leitura: a urgência de escrever não é menor nem menos intensa do
que a urgência de ler.
“Escrevo porque leio”, afirmam alguns escritores. Mas um
leitor poderia dizer: não escrevo nada, mas é como se a leitura fosse um modo
de escrever, de imaginar situações, diálogos e cenas que a memória regista no
acto da leitura.
O pior leitor é o passivo, resignado, que aceita tudo e lê o livro como uma receita ou bula para o bem viver. Este é o não-leitor. Porque o texto de autoajuda é um compêndio de trivialidades, palavras que não questionam, não intrigam nem fazem reflectir sobre o mundo e sobre nós mesmos.
O pior leitor é o passivo, resignado, que aceita tudo e lê o livro como uma receita ou bula para o bem viver. Este é o não-leitor. Porque o texto de autoajuda é um compêndio de trivialidades, palavras que não questionam, não intrigam nem fazem reflectir sobre o mundo e sobre nós mesmos.
Um bom leitor reescreve o livro com a imaginação de um
escritor. Alguns vão mais longe. Com os olhos no texto e um lápis na mão, eles
fazem anotações nas margens das páginas, sublinham frases, cravam aqui e ali
pontos de interrogação. Há os que elaboram fichas com resumos ou esquemas do
enredo, árvores genealógicas, comentários sobre o tempo da narrativa, posição
do narrador, personagens, ideias, metáforas, ambiente político, social etc.
Esse leitor incansável seria o leitor ideal, mencionado por Umberto Eco no
ensaio “Seis passeios pelo bosque da ficção”.
“No Tempo redescoberto “– último volume do “Em busca do
tempo perdido” –, o narrador de Proust faz uma reflexão sobre esse tema.
Um livro, diz o narrador proustiano, pode ser sábio demais, obscuro demais para
um leitor ingénuo. A imagem que Proust evoca é a de uma lente embaçada entre o
olhar e as palavras: um anteparo à leitura. Mas o inverso também acontece
quando o leitor astucioso revela capacidade e talento para ler bem. De acordo
com o autor francês, “cada leitor é, quando está lendo, o leitor de si
próprio”. Ou seja, uma obra literária permite ao leitor discernir tudo aquilo
que, sem a leitura dessa obra, ele não teria visto ou percebido em sua própria
vida.
No quarto capítulo de seu belo ensaio “O último leitor”, o
argentino Ricardo Piglia lembra a figura de um leitor incomum: o revolucionário
e guerrilheiro Ernesto Guevara. O comandante Che sonhava ser escritor, mas o
compromisso político-social o conduziu a outras veredas. No entanto, ele
escreveu diários de viagem, textos sobre técnicas e estratégias de guerrilha,
relatos inspirados directamente em sua experiência revolucionária em Cuba, na
África e na América do Sul. O que não falta em suas incansáveis viagens –
inclusive a última, pouco antes de morrer – é o livro, a leitura.
“A marcha, escreve Piglia, supõe leveza, agilidade,
rapidez. É preciso desprender-se por completo, estar leve e andar. Mas Guevara
mantém um certo peso. Na Bolívia, já sem forças, carregava livros. Ao ser
detido em Ñancahuazu, quando é capturado depois da odisseia que conhecemos, uma
odisseia que supõe a necessidade de movimento incessante e de fuga ao cerco, a
única coisa que ele conserva (porque perdeu tudo, não tem nem sapatos) é
uma pasta de couro, que leva amarrada ao cinturão, sobre a ilharga direita,
onde guarda seu diário de campanha e seus livros. Todos se desfazem daquilo que
dificulta a marcha e a fuga, mas Guevara continua mantendo seus livros, que pesam
e são o oposto da leveza exigida pela marcha.” (pág. 103)
A capa do livro (da autoria de Angelo Venosa) foi inspirada
numa fotografia de Ernesto Guevara lendo no alto de uma árvore. É uma imagem
notável do guerrilheiro – homem de acção – que faz uma pausa para ler. Armas e
letras, dois temas medievais explorados no Dom Quixote, parecem reviver nessa
imagem em que o leitor, significativa e simbolicamente, situa-se no alto. Longe
de ser uma posição de quem se sente elevado, a altura, aqui, é uma posição precária,
que denota perigo e instabilidade. O inimigo pode estar por perto, pode surgir
a qualquer hora e matar o guerrilheiro-leitor. Na fotografia é impossível
reconhecer com nitidez a figura de Guevara, mas o observador sabe que lá no
alto, sentado num galho, alguém olha para um livro. O fundo da fotografia é
alaranjado, de uma tonalidade que evoca o fogo crepuscular: começo ou fim do
dia. Ou luz que se esvai, anunciando a noite, o enigma do que vem por aí. Não
sabemos se este livro é o último que Guevara leu. O último leitor é a metáfora
de uma atitude diante da leitura: alguém que não pode viver sem livros.
Narrar para não morrer é a mensagem de Sherazade ao rei
Shariar (e ao leitor) em cada conto do Livro das mil e uma noites. Ernesto
Guevara lê para viver. Ou suportar a vida: fado de um homem que vivia
perigosamente à beira da morte. Mas ler é também o destino de tantos outros
seres que não se lançam à aventura utópica de transformar o mundo por meio da
acção revolucionária. Esse leitor apaixonado forma o duplo do escritor. E ambos
justificam a Literatura.
Milton Hatoun, em "EntreLivros"
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