O livro
“Violeta velha e outras flores”, de Matheus Arcaro, será lançado este mês pela
editora Patuá. A obra com 22 contos já nasce bem apadrinhada, com prefácio de Menalton
Braff. Neste seu primeiro livro lançado, Arcaro traz textos especialmente escolhidos
para o debute e divididos por similaridades temática e
linguística dos contos. Sugestão dada, segundo o autor, pelo crítico
literário Paulo Bentancur, que analisou a obra.
Conheça o
conto que dá título ao livro:
Violeta velha
A mancha
arroxeada que abraçava o olho esquerdo não foi suficientemente apelativa para
que Timóteo continuasse o movimento. Desobediente, a mão manteve a faca
enferrujada imóvel, encostada à pele do pescoço meticulosamente talhada pelo
tempo. O espelho, estreito como seu espírito, uma vez mais testemunhou a
covardia, silencioso. Com esforço, o suor que nascia farto nas fontes nuas
vencia as valas do rosto e repousava salgado nas clavículas.
Olhou para o
lado, olhos arredios, e notou os pelos brancos que começavam a se alastrar pelo
rosto do menino deitado no sofá (seria sempre um menino para ele). “As crianças
são naturalmente cruéis”. Lembrou-se da frase ouvida há quase setenta anos,
numa tentativa inconsciente de dar sentido ao que sentia, de explicar aquelas
coisas que não cabiam em seu mirrado peito. Os acontecimentos antigos pareciam
esculpidos na memória; os recentes lhe escorriam pelas fendas da massa
cinzenta. Mas a visão é uma grande aliada da lembrança senil: os hematomas
raramente abandonavam seu corpo. E doíam. Doíam muito. Contudo, doíam menos que
a ciência de que o autor deles era aquele menino.
O álcool
exalado pelo corpo embutido no estofado inundava o minúsculo cômodo, metade da
casa alugada. As paredes, com as intimidades à mostra, compartilhavam sua
aspereza com o senhor de cabelos esbranquiçados. Errei, Senhor. Um vaso não sai
torto se forem boas as mãos do oleiro! A parábola era perfeitamente plausível:
Timóteo trabalhara quarenta anos na olaria da pequena cidade e orgulhava-se de
nunca ter recebido uma reclamação sequer sobre os vasos e vasilhas que
produzia.
Ficou maior o espelho e, de relance, ele reparou na mesa de madeira: as migalhas do pão seco que comera no almoço refletiam a luz do sol a entrar pela esquálida janela, acima do sofá. Aquele feixe de luz parecia suturado ao ambiente: a vitalidade dos pingos luminosos que tremeluziam sobre a madeira surrada oprimia o velho. Na verdade, evidenciavam que, por mais sórdida que seja a situação, sempre há pontos de luz. E ele não soube identificar isso no filho. Apertou veementemente o cabo da faca na esperança de esmagar a sua culpa. Precisava dissecá-la, mas era como um legista recém-formado; não encontrava o fio para conduzir sua regressão; a memória, uma colcha de retalhos com buracos. De súbito, veio à mente o nascimento do filho: sem clemência, a parteira enfiara um ferro na esposa, pra que um ferro desse tamanho, dona? Quanto sangue, meu Deus! Calma, meu bem. Nossa Senhora do Bom Parto há de olhar pela gente. Os dedos da mulher, que há instantes pareciam cravados à lateral da cama, agora tremulavam a poucos centímetros do chão. Era obsceno o contrastaste entre a boca roxa dela e os berros do menino que desocupara o ventre.
O velho
sacudiu a cabeça. Com isso, reavivou a primeira prisão de Afonso. Ele não fez
nada, seu guarda, aquele pacote não era dele! Os homens de cinza o atiraram no
chão de barro batido feito um saco de cimento. Algemaram-no. As sirenes
invadiram o quarteirão e, como ímãs, atraíram os vizinhos para fora de suas
casas, espetáculo ao vivo, gratuito. Dois anos e oito meses no reformatório,
até atingir a maioridade. Os olhos baços do espelho morderam-no novamente. A
cabeça do filho tombou levemente e os cabelos sebosos misturaram-se ao suor da
testa. Nem de longe lembravam os fios vivos da infância de Afonso. Penteie
direito, senão o cabelo eriça em cima, menino. Tem que ficar bonito no retrato
que vamos colocar na estante, perto do da sua mãe. Ela ficaria orgulhosa: nosso
menino na primeira comunhão! Pela boca entreaberta do filho deitado escorria
uma gosma esverdeada. Timóteo sentiu nojo de Afonso como no dia em que ele começou
a roubar as coisas de casa. Preciso de um trocado, pai... Velho mentiroso, eu
sei que você tem dinheiro. Cadê a grana da aposentadoria? Após destruir a
pauladas os parcos objetos da sala, o jovem saiu carregando o ferro de passar
roupa.
Tossiu
violentamente o homem do sofá, mas não abriu os olhos. Estava ali
fisiologicamente, emprestado à atmosfera. Do movimento de descida do peito
desnudo nascia um ruído tão imundo quanto seus pés. Em tempos desbotados, o
velho correria para acudir o menino, dando-lhe uns tapinhas nas costas, como
lhe ensinaram as irmãs da igreja que frequentava religiosamente. Porém, os cabelos
ralos não se moveram. Tampouco a barata que passeava sobre o porta-retratos foi
capaz de suscitar-lhe alguma reação. O corpo de Timóteo estava suturado ao
momento. A mente, por sua vez, parecia suspensa; como uma bailarina, abraçou a
lembrança da festa que preparara para Afonso: o bolo custara-lhe duas semanas
de trabalho. Os salgados, o refrigerante e as bexigas faziam-se presentes
graças às economias que guardara debaixo do colchão de palha. O sacrifício
valia a pena: a primeira década do filho carecia de uma celebração digna de
fotografias. Para testemunhar o apagar das velas foram chamados quatro
amiguinhos de Afonso e também André, fotógrafo amador. Depois do bolo cortado,
a foto oficial da festa. Os convidados nem precisaram espremer-se para o
enquadramento. Sorrisos e abraços... E gritos... Solta meu filho, seu filho da
puta! Quem era aquele homem de aproximadamente quarenta anos que invadira a
festa e espancava o menino? As crianças saíam correndo aos gritos enquanto o
homem desferia socos e pontapés no protagonista da festa. Por que não acudi meu
filho? Sangrava, sangrava e o pai soldado no chão, atirando palavras.
Um ruído,
desta vez mais negro, e Timóteo voltou novamente a cabeça para o sofá. Era ele
o agressor! Por que fez isso com você mesmo, Afonso? Timóteo teve ímpetos de
arremessar a faca na cabeça que pendia do móvel despelado, mas não desceu da
intenção. Pela primeira vez em anos experimentou o sal nascido nos olhos. E a
ardência, que começara nas cicatrizes dos lábios, espessara-se e avançava boca
adentro deixando rastros de azedume pela língua. O líquido desceu esfolando o
esôfago, avalanche cáustica que arrastava a impotência de um pai negligente,
bateu no estômago e voltou impregnado de bílis. Com o passado entre os dentes,
Timóteo dessentiu os membros. Observou o olho esquerdo, gineceu de uma violeta
velha, murcha e úmida, até o sol vestir a capa da noite.
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