quarta-feira, maio 13

Em Buenos Aires, a cultura se apaga para proteger a metrópole

Nunca se saberá com certeza quantos teatros existem em Buenos Aires. Oficialmente, são cerca de 300. Mas há muito mais. E a qualquer momento, em qualquer pátio ou sala, surge outro. Esta é uma cidade de teatros, de livrarias, de gente esquisita e notívaga que discute filosofia. O fechamento devido à pandemia infligiu uma ferida muito profunda na alma portenha. Sob um dos confinamentos mais rígidos do mundo, com muito poucos testes realizados, com o país devastado economicamente e à beira da suspensão de pagamentos, com um sistema hospitalar apreensivo que prevê para junho os piores momentos, Buenos Aires contempla o abismo.

Acontece, porém, que a capital argentina está acostumada aos desastres. Claudio Tolcachir, um dramaturgo, ator, diretor e professor de 45 anos, conspícuo representante do novo teatro latino-americano, sabe muito bem disso. Ele tinha 26 anos quando abriu uma sala ao lado do seu apartamento, no bairro popular de Boedo. Falamos de 2001, o ano do corralito (confisco de depósitos bancários) e da hecatombe financeira. “Tinha gente que se vestia com elegância para vir ao nosso teatrinho, um lugar muito humilde em uma área bastante perigosa naquela época”, lembra. “Nos momentos de grande crise, os portenhos vão ao teatro.”
A palavra “necessidade” surge com frequência quando se fala de cultura na capital argentina
Nesta nova hecatombe, não se pode ir ao teatro. O teatro, portanto, é entregue em domicílio por meios telemáticos. Às 20h, Claudio Tolcachir aparece na tela e cumprimenta o público, pedindo-lhe que desligue os celulares e diminua a luz, e apresenta uma obra gravada. Ou transmite ao vivo uma peça representada, por exemplo, na cozinha de sua casa. “O teatro não foi feito para a câmera, mas é o que há”. A escola da Timbre 4, a companhia de Tolcachir, também não foi criada para que os alunos acompanhassem de casa as aulas. Mais uma vez, é o que há: toda manhã, o dramaturgo e seus professores se conectam com os alunos e dão prosseguimento ao programa. “Para os pequenos, não é fácil ensaiar nessas condições, às vezes na frente da família”, admite.

Quem pode pagar, paga. Quem não, não. O mesmo ocorre com os espetáculos: os atores passam uma “sacolinha virtual” e cada espectador deposita nela o dinheiro que considera adequado. Em um fim de semana, a audiência pode passar de 100.000 espectadores.

Claudio Tolcachir é um caso entre muitos. Acredita que as crises estimulam a criatividade. Especialmente em uma atividade tão incorporada à história portenha como o teatro. Segundo ele, a identificação entre Buenos Aires e o palco veio com os imigrantes, que tinham a necessidade de se reencontrar com sua cultura. Cada comunidade tinha seus teatros e seus momentos de catarse. Do sainete espanhol, por exemplo, surgiu o sainete argentino. As ditaduras e as numerosas épocas sombrias reforçaram o papel do teatro como lugar de comunhão e resistência. “Trabalhamos apegados à atualidade e fazemos teatro de sobrevivência, sem produção, sem salários, simplesmente porque necessitamos”, afirma.

A palavra “necessidade” surge com frequência quando se fala de cultura em Buenos Aires. Para citar um caso, Pablo Braun, descendente de uma das famílias mais ricas da Argentina, não deveria estar brigando com a distribuição de livros: poderia ocupar um escritório em alguma das empresas dos Braun, como fez por pouco tempo. Mas precisa salvar sua livraria, a Eterna Cadencia, talvez a melhor da cidade (nela não há um único volume que não valha a pena), sua editora e a pequena rede de livrarias em shopping centers que adquiriu recentemente. E precisa recuperar o contato pessoal com seus clientes. Pablo Braun é o tipo de livreiro a quem você pergunta o que deve ler.

Fundou a Eterna Cadencia em 2005, quando a Argentina começava a se recuperar da grande crise de 2001. Acredita que a de agora é pior: “O que está por vir é um desastre, algo dramático que nos obriga a nos reinventarmos”. Ele já voltou para trabalho. Distribui livros com um motorista. Sente-se com mais ânimo do que algumas semanas atrás. Mas se pergunta se a pandemia obrigará a cultura a se refugiar nos braços das grandes corporações digitais. “A própria cultura terá de refletir sobre isso”, comenta. E suspira: “Acho que para o teatro é pior ainda”.

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