domingo, maio 31

Assim começa o livro ....

— Ai que ma levam! ai que ma levam!

Uma nuvem desce da serra: arrastam-se os rolos pelas encostas pedregosas e depois as baforadas espessas abafam de todo a vila. E noite, cerração compacta, névoa e granito, formam um todo homogéneo para construírem um imenso e esfarrapado burgo de pedra e sonho. Pastas sobre pastas de nuvens álgidas, que a noite transforma em crepes, amontoam-se na escuridão, O granito revê água. E sob a chuva ininterrupta, sob as cordas incessantes, a vila, envolta na treva glacial, parece lavada em lágrimas...

— Ai que ma levam!

É o único grito que irrompe do escuro, lúgubre, aflitivo, raspado. Depois o silêncio, a mudez concentrada da noite, a nuvem negra coalhada sobre as ruínas da vila toda lavada em lágrimas. Só aquele grito ressoa na praça solitária. A torre da Sé deformou-se: o granito aliado à névoa de mistura com a noite, abriram arcarias, alongaram as portas e fizeram dos restos da muralha antiga um tropel caótico. É uma amálgama de realidade e pesadelo, trapos de nuvens e palácios desmedidos. A escuridão remexe. Não se sabe bem onde o sonho acaba e começa a matéria, se é uma cidade desconforme, sepulta em treva e lavada em lágrimas, ou meia dúzia de casebres e uma torre banal. Uma luzinha alumia um Cristo aflitivo na abóbada de pedra sustentada por quatro arcos ogivais. Mas a luz treme à ventania, os arcos balouçam, a abóbada estremece, e, ao repelão do vento, grandes sombras esvoaçam, afundando-se no negrume. Há uma sufocação, um espanto, o terror de que a candeia se apague, e só fique o nada, a escuridão imensa e compacta e o grito raspado Lá a levam! Lá a levam!... É como a última claridade dum barco de náufragos, tragado sem remissão no redemoinho dum indefinido oceano polar. Adivinha-se a porta da igreja, uma golfada de tinta, e o telingue-telingue eterno duma fonte o choro baixinho daquela escuridão cerrada. A luz estrebucha. Se o vento a sumisse levaria consigo o último sinal de vida. Ficava apenas na noite infinita, impenetrável e revolta, o grito de angústia:

— Ai que ma levam!

As palavras saem duma casa incrustada na Sé. Dentro, numa sala, expõem num caixão o cadáver duma mulher magra, de cera, com flores baratas de papel na cabeça e no seio ressequido.

Agarrado ao esquife alguém berra, sacudido de desespero, como um farrapo ao vento. Em vão. A morta continua a sorrir, com os dentes arreganhados e um lenço apertado no queixo, numa imobilidade pétrea. Fora a noite, a invernia brava, dentro a morte e aquela dor suprema e inútil...

— Ai que ma levam! ai que ma levam!

Na sala pegada, de teto abaulado, um candeeiro de petróleo alumia outras figuras. São as visitas de enterro: velhas, dois homens, um padre, todos de negro, hirtos e solenes, em roda, nas cadeiras da sala e no canapé de palhinha. De vez em quando uma boca mastiga no escuro. A luz bate-lhes de chapa, ilumina-os como retratos: certos pedaços de fisionomia ressaltam, avançam, outros recuam na sombra. As figuras cerimoniosas são disformes, lembram caricaturas, e os traços exagerados exprimem egoísmo, avareza e secura. Ouve-se o raspar das unhas na seda preta dos vestidos. Uma voz soturna afirma: Deus lá sabe, na sua misericórdia infinita... E outra acode logo, num tom esganiçado e importante: Resignemo-nos perante os seus decretos...

São palavras da regra, que soam falso, sempre as mesmas. As outras mulheres ajeitam-se, suspiram e tomam a quedar-se num longo silêncio enfastiado. O homem no quarto ao lado, seguro ao esquife como um náufrago a uma tábua, soluça, e aquela dor que não cessa, indigna e exaspera as velhas. Não podem suportá-la. Todas trazem vestidos de aparato, com vidrilhos, e mitenes enfiados nos dedos ósseos.

A mobília da casa é uma embirrenta miscelânea de cacos doirados de casquinha, um canapé, arcas, cadeiras puídas, mesas de mogno com ignomínias expostas: cães de vidro e bordados de croché. No canapé as velhas empertigadas e os homens esperam, sem terem mais que dizer. Tudo aquilo, seres e coisas, exprime banalidade e secura e ao mesmo tempo certa grandeza. Pressente-se que as existências se fizeram de mil pequenos nadas acumulados. À luz do petróleo os olhos encovam-se-lhes, a dureza sobressai e aumenta. As mãos lívidas e secas, cheias de engelhas, deformadas pelas exostoses, são poemas de maldade e de astúcia. Parecem de mortos e tão afiadas como as da crueldade.

O gordo, do lado da porta, todo sebo, que cabeceia e dormita, é o Belisário escrivão, finura e crápula vestidas de negro. Resfolga. Enriqueceu à custa de penhoras e desgraças. Há almas assim, sempre ocupadas por esta mira o oiro. Todo ele por dentro é papelada e ronha. Está tão habituado a processos, que, mesmo sem necessidade, cisma em tranquibérnias. Apertar alguém, esmagá-lo, reduzi-lo pouco e pouco à última angústia, à pior extremidade, é para ele um gozo estranho. Sente uma enorme satisfação em perder os que caem nas unhas, em os levar por complicadas fórmulas até à máxima pobreza, metido na sombra, rabiscando papel selado, e vendo, minuto a minuto, o seu sonho tornar-se realidade.

A seu lado está a Felícia, presidente honorário das servas de Deus, associação instituída para que ninguém possa morrer sem confissão. É uma velha magra, austera e ríspida. Remexe de contínuo a boca enorme. Tem a maxila inferior saliente e os seus gestos são decisivos. Quando fala ordena. Os passos rangem-lhe ao atravessar as salas. Põe e dispõe. Nas sacristias temem-na: nomeia e demite padres, e entra como uma rajada nas existências alheias, revolvendo tudo, derrubando tudo. Conversa baixinho com a Patrícia, viúva gorda e banal, que expõe no peito volumoso e mole, num medalhão do tamanho duma almofada, o retrato do marido morto e um caracol do seu cabelo tingido. Cheira a banha. Perto dela outra velha, inquieta e rancorosa, discute com o padre:

— Até a gente devia mostrar satisfação quando nos morre uma pessoa de família...

— Conforme... resmunga o sacerdote.

— Porque a dor é uma afronta a Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu para nos salvar.

E todas as velhas, ao santo nome de Deus, logo descolam à uma os traseiros do canapé.

— É contrariar-lhe os seus desígnios! conclui a Patrícia com importância e cólera.

— Mas, minha rica senhora observa o eclesiástico Deus é bom, Deus compreende que as criaturas são de frágil barro. Todos neste mundo estamos sujeitos a fraquezas.

— Pois, quanto a mim, é um escândalo! exclama, e volta-se para as outras bem alumiada pela luz.

É a amiga mais íntima da Felícia. Juntas são temíveis. Nenhum doente lhes escapa. Esperam, espiam, compram os criados, intrigam e caem-lhes em cima, à hora da morte, pregando-lhes Deus, o inferno e as labaredas eternas. Alguns protestam. Debalde: as servas de Deus não desanimam, nem os largam. Rezam extensas ladainhas em livros encapados de negro, sentam-se dia e noite à cabeceira dos leitos, pregam, choram, chamam em altos gritos pela misericórdia infinita e subjugam-nos afinal, aterram-nos, matam-nos às vezes mas sempre salvos.

A Felícia persegue até à última, com furioso rancor, os heréticos, seus inimigos pessoais. Chegara a odiar o filho por ser ateu e a expulsá-lo de casa. Nunca lhe perdoara, nem à hora da morte, a sua irreligião. Recusara-se a entrar no quarto onde ele agonizava e nem o próprio confessor conseguira arrancar à dureza daquele coração o perdão do desgraçado, que minutos antes da morte bradava em altos gritos pela mãe. Arrastara-se depois descalça nas procissões, deixando marcado a sangue nas lajes da vila o rasto de seus pés. Por orgulho não confessava nem a si mesma o remorso que crescia com os anos e com a aproximação da morte.

As velhas sabem tudo que se passa na vila. Farejam os escândalos clericais e correm logo à diocese a denunciá-los ao arcebispo, que as teme como à praga. Na casa da Adélia há uma contínua roda-viva: vão lá à tarde todas as criadas da vila rezar o terço. E ela indaga, rebusca, espiolha o que se passa nas casas de fora e nas consciências alheias. E suspira:

— Ai não morro sem ver outra vez a Santa Inquisição!

A um canto estão outras mulheres e alguns homens nulos, um empregado da Câmara muito meticuloso, sempre vestido de negro. Seu crânio pontiagudo reluz como um espelho.

Do céu barrado continua a desabar a fastidiosa chuva e a ventania abala as vidraças. A vida é um inferno de banalidade e toda aquela secura pesa sobre o pobre homem, que continua a gritar fincado no caixão:

— Lá a levam! lá a levam!...

— Então, então, meu amigo?... Vamos!

— Todos têm de passar por este transe!

— Está no Céu! Resigne-se! então!...

As velhas, imponentes nos seus vestidos de aparato, bocas somíticas e cuias de retrós dizem, só dos lábios para fora, as mesmas palavras vás. A luz do candeeiro quebra-se na careca reluzente do empregado camarário e a essa claridade as figuras parecem deformadas e monstruosas.

— Tudo tem limites intervém com indignação a Adélia até a dor. Resigne-se, seja cristão!

— Não há nada pior que não acatar os decretos do Altíssimo.

De vez em quando, uma velha ergue-se e vai em bicos de pés ver a morta. O caixão está no meio do quarto, com duas tochas ao lado e o crucifixo à cabeceira. Entram, espargem o cadáver de água benta e saem logo enojadas.

Ao lado do esquife a Candidinha vela, sentada e embrulhada no xale coçado, figura de túmulo de guarda ao cadáver. Não diz palavra. Às vezes do corredor escuro irrompe outra criatura, toda em lágrimas: é a criada, a Joana. Traz uma criança ao colo. Mas afastam-na logo, levam-na de rastos, e ela lá vai com a pequena nos braços, aos gritos:

— Minha menina! minha menina que fica sem mãe!...

O cadáver apodrece, murcha entre as rosas de papel: lembra um passarinho num esquife enorme. Os olhos são duas manchas na palidez da face ressequida; os dentes arreganham-se por entre os lábios roxos... E as velhas fogem com o lenço no nariz, exclamando sem convicção:

— Está no Céu!

Só a Candidinha, embrulhada no xale, sem bulir, espera.

— Está no Céu, senhor Anacleto e meu respeitável amigo consola o padre e conclui: O que não tem remédio, remediado está...

E ele, sem querer ouvir, abraçado ao caixão:

— Deixem-me! deixem-me!...

Então o padre, ferido no seu orgulho, diz-lhe com severidade:

— Basta! Homem, isso até lhe fica mal! É um pecado. Lembre-se do que Cristo sofreu para nos salvar! E aponta o céu. Arrancam-no enfim dali, numa explosão de lágrimas.

Ao pé daquela dor sincera toma maior relevo a secura e a banalidade dessas mulheres, que só temem a Religião e, sobretudo, o Inferno. Perto do cadáver entre os móveis doirados que parecem mais reles com a ventania imensa lá fora todas estas figuras banais avolumam como figuras de tragédia: os ventres inchados parecem mais inchados ainda, as máscaras mais cansadas, e mais negras as bocas sem dentes que remoem.

— Ai que ma levam!...

Tinha morrido na véspera. Nas últimas horas do dia nublado, ao sentir-se trespassada pelo pior frio, o da morte, chamara para junto de si a irmã, a Candidinha, uma mulher insignificante, envolta num xale gasto. Pelos vidros côa-se a luz baça do crepúsculo. Fora choram. A velha traça o xale, e a boca aumenta-lhe, avivam-se-lhe as rugas.

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