segunda-feira, maio 25

Exercícios de desconfinamento

Assim que as livrarias abriram em Lisboa, fiz uma ronda por aquelas de que gosto mais, subindo pela Rua do Poço dos Negros, desde a Madragoa até ao Chiado. Não foi, infelizmente, uma experiência tão agradável quanto havia previsto.

Como tantos outros leitores, não entro numa livraria com o objetivo de comprar livros — entro para namorar os livros. É muito diferente de entrar, por exemplo, numa padaria. Quando entro numa padaria é para comprar pão, e saio de lá com pães. Quando entro numa livraria, posso sair de mãos vazias, mas sempre um pouco mais rico e mais feliz do que quando entrei. Folheio as novidades, detenho-me nos autores que já conheço ou em algum título particularmente intrigante. Por vezes sento-me — quando há poltronas disponíveis para o efeito, algo que, aliás, deveria ser obrigatório em qualquer livraria —, e leio lentamente as primeiras páginas. Se o livro me interessar volto a colocá-lo na banca, na intenção de comprá-lo numa próxima visita. Raramente compro um livro ao primeiro olhar. Paixões assim acontecem, sim, mas não são muito frequentes.


Comecei a minha jornada na “Palavra de Viajante”, que, como o nome sugere, é uma livraria especializada em literatura de viagens. Logo à entrada tive de desinfetar as mãos com álcool gel. Até aí tudo bem. A máscara no rosto é que não ajuda. Assim que coloquei os óculos de leitura estes embaçaram. Fiquei dez minutos a lutar com os óculos — limpa, embaça, limpa, embaça — até que desisti, guardei os óculos no bolso do casaco e optei pelos livros com um tipo de letra maior. Logo compreendi que os únicos livros que ainda consigo ler sem óculos estão na seção infantil. Nas restantes livrarias tive de cumprir um ritual idêntico. A máscara — mesmo para quem não precisa de óculos — depressa se revela um pequeno tormento. Fica difícil ler e respirar ao mesmo tempo. É como se alguém nos estivesse sufocando enquanto tentamos ler. O que deveria ser um prazer transforma-se numa luta desesperada. Finalmente, só queremos sair da livraria, arrancar a máscara e respirar livremente o ar perigoso destes novos dias.

Nos restaurantes o incômodo é menor. Pelo menos não nos forçam a comer com a máscara posta. Em alguns, porém, a nova etiqueta social é tão complexa que leva mais tempo a ler do que o menu. Todos os restaurantes exigem a máscara posta à entrada. Em alguns podemos tirar a máscara enquanto aguardamos pela comida. Noutros não. Nestes últimos, somos forçados a conversar mascarados, e a afastar a máscara de cada vez que queremos tomar um gole de água ou de vinho. Agora sei como se sentem as mulheres que vestem burca, e por que nunca encontrei nenhuma num restaurante.

As praias reabrem a 6 de junho, e, poucos dias depois, recomeçam os concertos. A mais famosa sala de Lisboa, o Coliseu dos Recreios, anuncia para 13 de junho um show do cantor e compositor carioca Pierre Aderne, à frente do seu projeto Rua das Pretas. Gostaria de ir mas confesso que tenho medo. Do vírus, sim, mas sobretudo das novas regras. Não consigo nem me imaginar num show, de máscara,  durante hora e meia, tentando manter-me a rigorosos dois metros de distância de todos os outros mascarados. Acho que prefiro esperar que o vírus volte para os morcegos
José Eduardo Agualusa

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