segunda-feira, maio 18

Memórias de um colecionador de luz

Um dia perguntaram a Ryszard Kapuscinski o que o havia impressionado mais nas suas inúmeras viagens por África. O jornalista polonês, famoso pelas suas extraordinárias reportagens literárias, tão próximas por vezes do chamado realismo mágico, pensou um pouco: “A luz!”, disse por fim. “A claridade.”

A mim, longe de África, o que mais me dói é a escuridão. Confinado em Lisboa, enquanto aguardo um avião que me leve de volta a Luanda, a Maputo, ou à Ilha de Moçambique (Muhipiti), onde nos últimos anos construí parte da minha vida, o que me salva é a minha vasta coleção de esplendores.

Revejo, para começar, todos os fulgores de Muhipiti. A primeira luz da manhã, lavando os pátios, subindo pelas arcadas, os arcos mouros e os átrios, acendendo as pratas e os ouros nas igrejas e velhos palácios, perdendo-se nos bordados dos móveis indo-portugueses, cintilando nos cristais. Revejo a seguir a dura lâmina do sol, incendiando as praças, cegando as lagartixas que se perseguem umas às outras nos muros antigos dos quintais. Estendido de costas na areia, sigo as aves pairando imóveis no céu sem fôlego. Mais tarde, volto a caminhar à sombra das ruínas, por onde antigamente avançavam riquexós, enquanto escuto o rumor desse tempo antigo, canções perdidas, o estalar dos risos das meninas. A luz é tanta que queima os pulmões.

Uma das melhores peças da minha coleção é uma tarde de pura magia, em Cachoeira, no recôncavo baiano, a 1 de março de 2003, quando vi o sol rasante embater de frente contra um escuro paredão de nuvens. A luz antes da tempestade. Enquanto escrevo estas linhas tenho diante de mim uma aguarela que pintei na altura: casarões deflagrando de espanto, enquanto uma velha Brasília amarela mergulha na chuva.

Também gosto muito de certas tardes remotas, era então muito mais menino do que sou agora, quando ficava a ver, da varanda do meu quarto, o sol a cair sobre o capim alto. Felizmente, há muito sol no meu passado. Ocupo horas limpando o pó à minha coleção de brilhos.

Conheci em Luanda um americano que criava arco-íris no quintal da sua casa. Arquimedes Moran chegou a Luanda nos anos 1960, carregando às costas um contrabaixo e um mistério (ainda maior do que o contrabaixo). Durante o dia trabalhava numa oficina mecânica. À noite, tocava em bares. Aos domingos, dedicava-se a construir artefatos bizarros, de enorme inutilidade prática. Um deles destinava-se a produzir arco-íris, que o americano projetava no quintal, para a alegria das crianças, dos poetas e dos vagabundos.

Perguntei-lhe se me podia fabricar arco-íris desdobráveis, para eu montar na solidão do meu quarto, sempre que me sentisse deprimido — acho que já vaticinava os tempos tristes que vivemos agora. Moran considerou demoradamente a minha proposta. Por fim, descartou-a com um leve encolher de ombros: “Toda a beleza é efémera”, sentenciou, muito sério: “A verdadeira beleza é irrepetível e imprevisível. Um arco-íris será belo enquanto permanecer indomável.”
José Eduardo Agualusa

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