Mary Alayne Thomas |
Dinamene nascera um dia, experimentara o terrível prazer da precariedade. Às vezes, os olhos dos homens traziam-lhe um violento odor a lenha e leite, uma coisa que escaldava como sangue a jorros de pulsos abertos. Tentara rasgar a pele com uma tesoura funda, e de imediato ela se lhe mudara em granito escuro, brilhante. Meteu-se-lhe então na cabeça que a ilha havia de ter um buraco, um lugar por onde a queda pudesse ser definitiva. Há muitos anos, na escola, Dinamene aprendera a fugir de poços, grutas e covas porque no centro da terra ficava o inferno, mas agora ela não tinha qualquer ideia do que fosse uma escola. Correu a ilha toda muitas e muitas vezes, e quanto mais corria mais o seu corpo se afastava da terra. Pisava orquídeas e elas voltavam-se para o sol, como se em vez de pisadas tivessem sido acariciadas pela brisa do mar. Correu tanto que acabou por provocar os ventos e congregar as nuvens que andavam lá longe pelos continentes do mundo. A ilha pôs-se a baloiçar como uma alma confusa e entornou Dinamene para dentro de uma fortaleza de pedra roubada ao tempo dos piratas. A primeira sala parecia uma caixa de fósforos gigante, onde os fósforos desenhavam um labirinto de andaimes. Ao fundo da sala havia uma enorme mesa de madeira, daquelas de desenhar cidades ou meditar sobre o esplendor da verdade. Dinamene acabou por reparar que sempre que suspirava um dos fósforos caía e aparecia um desenho na mesa do fundo, que podia ser de frades ou arquitectos ou poetas. Queria tocar-lhes, mas os desenhos esfumavam-se, desfaziam-se em giz nas mãos dela. E o giz marcou o caminho da segunda sala, que era depois de uma ponte estreita, e quando ela entrou na segunda sala começou a nevar lá fora. Dinamene olhou para as mãos porque de repente o seu corpo fazia um barulho de livro desfolhado, e a pele desatou a encarquilhar-se muito depressa, até ficar cor de pergaminho, como os velhos ou os recém-nascidos. Não havia ali espelho que confirmasse a situação de Dinamene. De qualquer modo, Dinamene era imune aos espelhos. Só a água lhe reflectia os contornos, em dias de controlada luz. Deitou-se no chão, ao lado de uma espiral de flores que ali havia, e deixou-se cobrir pelas pétalas brancas e vermelhas, que lhe imitavam o frio da neve e o sabor metálico do sangue.
E então Dinamene lembrou-se. As imagens acudiam-lhe em tropel, recortadas em riso, assimétricas, numas cores ferozes de vida. Tinha um enorme cravo vermelho no cabelo em forma de estrela do mar e as suas mãos pequenas, pacientes, construíam uma cidade de fósforos. Crescera em volta daquela cidade. Quando acabou de crescer verificou que a sua cidade estava rodeada por uma verdadeira muralha de papel. Pegou na primeira folha e leu o que estava escrito. Amor, amor, amor, ah, minha Dinamene, eternamente. Soltou uma gargalhada e caiu do céu uma luz que se ateou aos fósforos e reduziu a cinzas a sua infância inteira. Dinamene decidiu esquecer. Coleccionou fotografias até inventar uma família que lhe ficasse bem. Às vezes deixava-se arruinar, às vezes bordava panos para os barcos que partiam. Quando se cansou de imaginar começou a copiar gestos e sentimentos dos romances. Não corria o perigo da seriedade, porque tinha um guarda-roupa faustoso dentro da cabeça. Nada era para sempre, nada merecia o empenhamento de uma existência, tudo fogo que arde. Era a única mulher que gostava de envelhecer. Entediava-a a ideia de acordar todos os dias da vida com a mesma pele lisa dos objectos sem passado. Amava as imperceptíveis corrosões do tempo, talvez por isso parecia cada dia mais nova. Ganhou fama de bondosa por alheamento, tão determinada se apresentava sempre a estudar a sombra das nuvens no mar. Intrigava-a a persistência que as pessoas punham nos actos, para o bem como para o mal. Por isso mesmo, desencadeava paixões furiosas. Troçava da persistência das guerras e dos sentimentos, vivia o poder absoluto da indiferença material. Nunca saíra da ilha, que é o mesmo que dizer que jamais lhe pertencera, porque tinha todos os sentidos pousados nas substâncias passageiras. Divertia-a o jogo das intensidades, donde começou a murmurar-se que mentia. Numa hora beijava, na seguinte enxotava e ria. Até que os limites humanos do desengano coincidiram com os limites físicos da ilha, e a colecção de apaixonados transbordou numa multidão de revoltados.
Dinamene foi convidada para uma festa no alto do monte, num palácio onde morrera um rei estrangeiro. Quando ela entrou, com um vestido da cor do Tempo, todos – homens e mulheres – suspiraram de desejo e pavor. Avançaram para ela com uma garrafa cheia de um líquido dourado e pediram-lhe que bebesse aquele néctar feito de propósito para ela. Dinamene bebeu e rejuvenesceu. Parecia que aquela bebida continha a fórmula da felicidade eterna. De certa forma, era verdade. Naquele jarro estavam as lágrimas de todas as pessoas que a tinham amado. De madrugada, a pele de Dinamene desatou a escurecer. Como se o corpo tivesse decidido preencher-lhe todos os espaços em branco da vida.
Foi assim que Dinamene passou da vida à arte, de ser humano a parecer literal: a alma encheu-se-lhe de estruturas precárias, o corpo esvaziou-se-lhe em sucessivas acumulações de cor. Até ao instante em que, deitada sob pétalas, Dinamene se lembrou de tudo e depois esqueceu-se e nasceu a chorar.
Inês Pedrosa
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