As ruas de Lisboa, agora desertas, limpas e desafogadas, pareciam mais largas. A cidade inteira resplandecia, lavada e escovada, sob um doce sol de primavera. À porta da padaria encontrou uma fila de umas dez pessoas, a rigorosos dois metros de distância umas das outras, todas equipadas com máscaras e luvas. À frente dele postava-se uma mulher elegante. Pedro costumava vê-la ali. A máscara dela fora confecionada a partir de um tecido florido. Era como se tivesse o rosto afundado num ramalhete de flores. Cumprimentaram-se com um aceno alegre. Nunca haviam trocado mais do que duas palavras de circunstância. Porém, Pedro simpatizava com a mulher e ela parecia retribuir tal sentimento. Naquela manhã isso ficou evidente quando, saindo da padaria, ao cruzar-se com o homem, a desconhecida lhe passou para as mãos um papelinho rabiscado à pressa. Era um número de telefone. Mal chegou a casa, Pedro ligou para o número:
– Olá! Sou o tipo da fila da padaria. Chamo-me…
– Não preciso de saber o teu nome…
– E o teu, posso saber?
– Não. Tu também não precisas de saber o meu. Podes chamar-me, eu sei lá, Alfonsina. Tu vais ser Mário…
– Posso saber o que fazes, quero dizer, profissionalmente? – perguntou, tropeçando nas palavras.
A mulher riu-se:
– Não. Prefiro inventar. O jogo é esse. A partir de agora só vale a ficção.
Disse-lhe que era cantora. Costumava cantar numa casa de fados. Cantou para ele. Cantava bem. Pedro, ou Mário, contou que era arquiteto. Tinha um atelier em Berlim. Fazia muitos projetos para países do Médio Oriente. Quando se despediram, três horas mais tarde, já se desconheciam muitíssimo bem. As conversas continuaram nos dias seguintes. Pedro foi-se tornando mais Mário a cada conversa. Nos intervalos sentia a falta de Alfonsina. Sozinho em casa, irritava-se com a presença de Pedro, que passava quase todo o tempo ocupado com as suas traduções. Sim, Pedro era tradutor. Sempre trabalhara em casa. O confinamento pouco alterara uma rotina invariável, acordar, lavar os dentes, comer um iogurte e uma fruta, e sentar-se depois a traduzir até à uma da tarde. Almoçava sempre na mesma tasca, na esquina, fazia uma sesta breve e voltava ao trabalho por volta das duas e meia.
Pela primeira vez em muitos anos, custava-lhe sentar-se para trabalhar. A cada frase se distraía. Deixava de ser Pedro, o tradutor, para ser Mário, o arquiteto. Deu por si a desenhar projetos de grandes edifícios de apartamentos enquanto pensava em Alfonsina. Ela não lhe dissera em que casa de fados costumava cantar. Procurou no Google, mas não encontrou uma única referência a uma fadista chamada Alfonsina. Lembrou-se então de que Alfonsina não era real, e isso doeu-lhe, como o fim de um grande amor. Logo a seguir, porém, ela ligou, e cantou para ele, e contou-lhe episódios divertidos da sua vida nas noites alfacinhas, e voltou a ser mais verdadeira do que qualquer mulher que ele alguma vez conhecera.
Pedro só costumava ir à padaria duas vezes por semana. Dois pães grandes davam-lhe para a semana toda. Depois que se começou a transformar em Mário, passou a ir todas as manhãs, na secreta esperança de encontrar Alfonsina. Como ela não aparecia à hora habitual, tentou outras. Chegava a ir à padaria três vezes no mesmo dia. O pão multiplicava-se. Guardou o excedente no congelador. Quando o congelador ficou cheio, passou a armazená-lo em caixas de sapatos, na despensa, na cozinha e até debaixo da cama.
– Preciso ver-te – implorou Mário, numa noite em que haviam conversado mais tempo do que o habitual, e ele terminara a última garrafa de bom vinho que guardava em casa. – Só quero ver o teu rosto.
Surpreendentemente, Alfonsina concordou. Prometeu que faria uma selfie, ao acordar, com a luz generosa do amanhecer, e que a enviaria para ele. Mário dormiu mal. Sonhou com uma mulher cujo rosto mudava ao longo do dia: de manhã era jovem e resplandecente; contudo, ia perdendo o brilho e a frescura à medida que o sol percorria o céu e depois declinava, até se transformar, finalmente, num ser opaco e murcho. Acordou por volta das sete da manhã, com o tilintar do telefone. Alfonsina cumprira a promessa: ali estava ela, desmascarada, posando diante de um vaso branco com orquídeas.
Pedro deixou cair o telefone. Sentou-se no soalho, encostado à parede, com o coração aos saltos: era Helena, a namorada de quem fugira, quinze anos antes, após vinte meses de uma relação tumultuosa. Vira-a pela última vez no casamento de uma irmã dela. A mulher quebrara-lhe uma jarra com orquídeas contra a cabeça, e ele tivera de ser levado para o hospital, coberto de sangue e de vergonha. Estava então no terceiro ano de arquitetura. Abandonara a faculdade, trocara de telefone e de cidade e recomeçara a vida como tradutor.
Olhou de novo o telefone. Era Helena, sem dúvida. E sorria.
José Eduardo Agualusa
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