quinta-feira, maio 21

Que livros compravam Simone de Beauvoir, Joyce, Hemingway e Lacan em Paris?

Durante a primeira parte do século XX, Paris representava mais do que nunca a cidade dos intelectuais, um ponto de encontro onde confluíam alguns dos autores-símbolo daquela época. Gertrude Stein a chamava de Geração Perdida, uma expressão que se tornou famosa graças ao romance Paris É uma Festa (1948), de Ernest Hemingway, e que descrevia os jovens que tiveram o azar de chegar à maturidade no contexto da Primeira Guerra Mundial. A capital francesa oferecia recantos que pareciam refúgios seguros, como a histórica livraria Shakespeare and Company. Fundada em 1919 por Sylvia Beach, dedicava-se, e ainda se dedica, à venda de livros em língua inglesa, naquele momento difíceis de conseguir a um preço razoável.


De fato, na Brentano custavam cinco vezes mais que os livros em francês, e o catálogo da Biblioteca Americana não era tão extenso a ponto de ser atrativo. Já o serviço da Shakespeare and Company se apresentava como algo único. Por oito francos e outros sete de depósito era possível solicitar um livro em empréstimo, ou dois se a cifra subisse para 12 francos. O tempo máximo de leitura permitido era de duas semanas para as publicações mais antigas e uma para as mais recentes. Todos esses detalhes são conhecidos graças ao trabalho do Projeto Shakespeare and Company, comandado pelo professor Joshua Kotin, da Universidade de Princeton (EUA), que vasculhou os arquivos digitalizados da livraria parisiense na Internet. Através desses dados, os pesquisadores revelam os gostos literários de alguns dos grandes escritores que costumavam frequentar a loja, como Gertrude Stein, James Joyce, Ernest Hemingway, Aimé Césaire, Simone de Beauvoir, Jacque Lacan e Walter Benjamin.

Os papéis escritos a mão mostram os nomes dos clientes e os livros solicitados em empréstimo. Assim, revela que Hemingway levou, entre as 90 publicações anotadas em sua ficha, as memórias de Joshua Slocum, Sailing Alone Around the World (“Navegando sozinho ao redor do mundo”, 1900), ou inclusive um exemplar de um dos seus próprios livros, "Adeus às Armas" (1929). Stein, por sua vez, leu a novela romântica A Love in Ancient Day (“Um amor na antiguidade”, 1908), de Truda H. Crosfield, e a fantasia Equality Island (“Ilha da igualdade”, 1919), de Andrew Soutar, enquanto Benjamin pegou um dicionário alemão-inglês e The Physical and Metaphysical Works of Lord Bacon (“As obras físicas e metafísicas de lorde Bacon”, 1853), este último pouco antes de seu suicídio, em setembro de 1940, quando a polícia espanhola lhe comunicou que o entregaria à Gestapo. Lacan aproveitou o serviço para pedir um obscuro livro sobre a história da Irlanda durante sua leitura de Joyce, e Claude Cahun, sob o nome de Mlle Lucie Schwob, dedicou-se às obras de Henry James. Se atrasavam a devolução, a política era sempre a mesma: entregar ao infrator um desenho que retratava Shakespeare arrancando os cabelos.

“Muitas coisas me surpreenderam”, diz Kotin. “Surpreendeu-me que Lacan lesse sobre a Irlanda, ou que Stein lesse romances de fantasia. Mas também pela diversidade das pessoas que eram sócias da livraria. E, por último, pela diversidade dos livros. Esperava que Joyce, Woolf e Mansfield fossem os autores mais populares, não achava que fossem Norman Douglas, Charles Morgan e Rosamond Lehmann”, acrescenta.

Hoje, o histórico de empréstimos desses escritores pode ser consultado livremente na página do projeto, com buscas por cliente ou por livro. Para Kotin, a grande quantidade de material consultado demonstra uma semelhança com nossos hábitos atuais. “Comparo suas leituras com nosso tipo de consumo: podemos ler romances e poemas sofisticados, mas ainda vemos coisas na Netflix.”

Beach publicou em 1922 a legendária novela de James Joyce, Ulisses, e manteve a Shakespeare and Company aberta até 1941, quando se recusou a vender o último exemplar de Finnegans Wake (1939) a um oficial nazista. George Whitman conseguiu reabrir a loja 10 anos depois e doou os arquivos a Princeton em 1964. A equipe de Kotin trabalha há seis anos no armazenamento desse infinito material e, apesar disso, o professor afirma que ainda estão em um ponto inicial. “Agora que temos o site, não vejo a hora de descobrir clássicos esquecidos ou comunidades de escritores unidos por seus gostos. E também informações sobre os americanos expatriados em Paris. Tenho muitíssimas perguntas. O projeto é uma ferramenta para respondê-las”, afirma. Nos próximos meses, o plano é incluir um mapa que mostrará onde os autores residiam e uma lista dos livros mais populares.

Sylvia Beach não quis cumprir a regra da Associação Americana de Bibliotecas que exige que essas instituições destruam os registros dos usuários para proteger sua privacidade. O resultado foi um arquivo de inestimável valor. “Era uma obsessiva colecionadora de informações. Nos anos vinte, a loja e a biblioteca já eram muito famosas. Ela sabia que as pessoas se interessariam pelos arquivos no futuro. Mesmo quando fechou, continuou emprestando livros”, conta Kotin.

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