A minha mãe está sozinha nesta casa desde que o meu pai morreu. Parece impossível ter sido há quase vinte anos. Nos fins de semana a minha irmã, o meu sobrinho Coca e eu vínhamos até cá, às vezes todos juntos, outras em separado, fomos trazendo outros a que também pertencíamos, a família pequena parecia ser grande. Encontrávamos sempre a mesa posta, um assado no forno, um pudim no frigorífico, as camas feitas, a casa como se nunca dela tivéssemos saído. Continuando a minha mãe a cuidar de tudo, foi-nos fácil não reparar que ela se ia afastando da mulher infatigável que aparece nas fotografias das molduras que há sobre a mesinha do telefone. As paredes da casa foram descascando a tinta, anos houve em que o inverno mais rigoroso desarranjou as telhas e deixou entrar água, às vezes um cano entupia, um interruptor deixava de funcionar, nada que a minha mãe não resolvesse com um biscateiro ou um mestre de obras que uma das amigas do centro de dia ou da paróquia ou das idas às termas lhe tinha recomendado. No ano passado, a casa precisou de obras de remodelação geral, mas nós continuámos a funcionar como se os nossos corpos, em especial o da minha mãe, fossem como o da casa: seriam sempre reparáveis e a ruína nunca os atingiria.
Quando se percebeu que o novo vírus se espalharia por cá, ainda nenhum de nós estava habituado à nova casa. Nem sequer a minha mãe. Mesmo assim quis ficar sozinha, Vós tendes as vossas vidas, não quero ser-vos pesada. Trazíamos-lhe as compras e passámos a existir separados, a minha mãe do lado de dentro da umbreira da porta e nós do lado de fora. Numa manhã acordei com um telefonema da minha irmã, A mãe não se está a sentir bem.
Mudei-me para cá.
Ao almoço, a minha mãe conta-me que disseram na televisão que os velhos terão de ficar fechados em casa até ao final do ano. Garanto-lhe que percebeu mal. Não me presta atenção, Já temos tão pouco tempo e vamos gastá-lo assim?, diz para si própria. Não sei como protegê-la. Repito que percebeu mal e mudo de assunto, O Coca vem visitar-nos daqui a pouco.
Agora a trabalhar em regime de layoff, o Coca traz os filhos, o Tomás e o Vicente, os bisnetos que a minha mãe tanto quer ver crescer. Não entram em casa e guardam o metro e meio de distância de nós. Trago cadeiras para o quintal e ficamos dispostos num estranho jogo de cautelas. O céu está fulgurantemente azul e o quintal cheira a ervas pisadas, uma seiva verdejante do início de tudo. O Vicente, que terá dois anos este mês, imita o irmão, de quase cinco, a fazer ginástica e o resultado é hilariante. Enquanto nos rimos podemos fingir que não temos medo. Depois, o Coca trepa com destreza para cima da garagem. Quando desce, fazemos um banquete com as nêsperas acabadas de colher, As alaranjadas são doces como um favo de mel, assevera a minha mãe. Irmanados no prazer de descascar e de comer as nêsperas, vamos desperdiçando conversas. Pergunto ao Tomás se sabe de onde são originárias as nespereiras. Responde com a cabeça que não, Vieram da China, do Sudoeste da China, informo. Ri-se e diz, desconfiado, que não pode ser.
Ao fim do dia, a minha mãe está outra vez na sala, à espera das notícias. O vírus é muito inteligente, comenta. O vírus não é inteligente, o vírus não tem esse tipo de qualidades, respondo. Mas ela acredita mais na televisão do que em mim. Metade dos mortos estava em lares e era mais ou menos da minha idade, diz aparentemente a despropósito.
Há uns anos cruzei-me com o Professor Eduardo Lourenço nos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian. Estava um belo dia, eu sentia-me bem. Como está, Senhor Professor?, cumprimentei-o animada, uma fiada de árvores atrás de nós a compor o cenário do prazeroso encontro. Ele esperou uns segundos para me responder com outra pergunta, Como acha que se sente um homem que fita o abismo que o levará? O facto de a minha mãe não ser capaz de o dizer desta maneira não a impede de sentir a mesma vertigem.
Acordo cedo e vou à janela do meu quarto. Um pássaro, um único pássaro, chilreia à volta da copa da nespereira. Do outro lado, o nevoeiro sobrepõe à serra de Sintra outra serra. Ouço a minha mãe nos barulhos costumeiros do pequeno-almoço. Sei que a encontrarei sentada à mesa a comer a malga de sopas de leite. Pergunto-lhe se se sente melhor. Confessa, envergonhada, A minha cabeça não anda nada bem, não consigo parar de pensar. Se algum dia imaginei que ia viver uma pandemia, desabafa mais tarde ao telefone com a minha irmã. Eu quero levantar a cabeça, mas isto não me larga, percebes? E agora dizem que não vamos poder sair até ao final do ano. Logo eu, que sempre gostei de andar na rua. Achas que me deixam ir ver o mar?
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