quarta-feira, maio 20

Eu merecia

Eu merecia estar agora na Bahia. Numa rede. Num coqueiral infinito, onde uma brisa balança a rede sem que a gente precise dar impulso. Não faço questão de pôr do sol de 4 cores, só que não haja mutuca, compromisso e axé num raio de 880 metros.

Merecia agora estar em Paris. Com Beatriz. No D’Orsay. Na suíte dos impressionistas. Pausar para um croissant na cafeteria do museu com o enorme relógio art déco ao fundo. Demorar-me na sala Van Gogh. E lá dentro passar o dia que lá fora deve estar um frio danado.

Não estou pedindo um novo Garrincha, o retorno do chiclete Ping Pong, um valor razoável pelo Plano de Saúde, a ressurreição de João, nada disso. Minha ambição é pateta. Minha lista é mixuruca, possível.

O que eu fiz para merecer? Não muito. Talvez esteja pedindo demais pelo pouco que fiz. Há quem queira em maior demasia: medalhas e troféus, aplausos e inveja, queima de fogos com banda de música. Merecimentos muito exagerados. Não é meu caso.


Um bom peixe com pirão e uma pimenta que não sufoque eu merecia. Caipirinha de limão galego com cachaça goiana. Um violão no escuro. Amor antes e depois de dormir. Uma charrete chacoalhenta em Tiradentes. Merecia uma história contada com muita calma.

Há quem duvide do meu merecimento: um antigo professor de Matemática torceria o nariz. Um tio que me achava completamente doido (completamente eu não diria, mas um bom tanto de razão ele tinha). O juiz que me deu ordem de prisão no Carnaval de 87 por cheirar lança-perfume. Os pais de duas namoradas que não iam com a minha cara, só porque eu… bom, deixa pra lá.

Há quem defenda que eu merecia mesmo era a humilhação de ser desmascarado. Que a farsa fosse revelada por inteiro, sem defesa possível. A esses, dou uma esperança: tenho feito umas bobagens, me expondo demasiado, esqueci como me cuidar, e desse jeito o segredo não demora a virar escândalo, com grande estardalhaço e matéria no Jornal Nacional.

Fui bom? Mal? Atirado? Covarde? Mereço? Não mereço? Sou sincero ou finjo descaradamente? Pouco importa agora, eu só queria mesmo algumas coisinhas. E cada vez menos.

Tudo resumido, peço poder escolher minhas batalhas, que elas não passem de minutos e façam pouco barulho. Ter o mínimo de domínio sobre meu tempo. Mais ouvir que falar. Em uma única palavra: a paz da rede na Bahia que ficou na primeira linha.

Mas que eu merecia poder voltar a comer empadinha, ah, isso eu merecia.
Cássio Zanatta

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