sexta-feira, maio 8

Em português soa muito melhor

Monotemático, o tempo presente acabrunha-nos o espírito e deposita-nos inquietações sobre a epiderme, como pó em móveis quietos. Temos os corpos em casa, mas os pensamentos lá fora, no futuro. Pouco nos resta para além de habitarmos também o sonho, esse que em português alguém que assinava António Gedeão tão certeiramente escreveu que comanda a vida.


Mas, de súbito, eis que começamos a sair e a deixar de ver o futuro apenas através dos vidros – o sonho e o amanhã ganham corpo. E, ontem (5 de maio), ao assinalar-se o agora consagrado pela Unesco Dia Mundial da Língua Portuguesa, dei por mim a pensar no quão mais animador é o futuro do Portugal de hoje, na sua relação consigo próprio e com a sua língua, face àquele que entre a bruma mal se descortinava, quando eu era criança, nos anos 80 e 90. Parolice crónica e estreiteza de espírito, provavelmente motivadas por décadas de repressão e de estímulo ao comedimento dos costumes, dos desejos e das ambições, são cada vez mais lembranças antigas, mas foi ainda num Portugal tímido e pessimista que cedo ganhei, oferecida pela música, a noção de que a nossa língua era um território de privilégio. No final dos anos 80, eu garatujava as primeiras palavras ao som dos hinos da Sétima Legião, que me proporcionaram os primeiros arrepios por motivação artística, e preparava-me para um longo amor com os GNR e as líricas de Rui Reininho, exemplos pungentes das potencialidades do escrever em português. Logo após o dobrar da década, conspirei com o meu colega e amigo Rui Duarte (ao contrário de mim, um talento enorme para a música) a criação de uma banda, que começou por chamar-se Sagasipê e, mais tarde, de modo muito apropriado, Desastres Naturais. Andávamos na escola primária e gravámos uma cassete. Os outros membros eram também grandes amigos, o Edgar e o Pedro. Ainda sei – não digo ainda sei cantar, note-se – muitas das letras. Diziam-nos que o português não era orelhudo, por isso escrevemos uma em inglês e eu também a recordo ainda. Não soava mal (também não soava bem), pelo que rapidamente tomámos uma decisão. Mas já lá irei. Quero sublinhar que foi a música – ela tem esse poder – que primeiro chamou a minha atenção para as faculdades não meramente utilitárias ou funcionais da língua materna. Logo depois, vieram as composições, os poemas, a banda desenhada que ainda guardo, os livros e livrinhos começados e nunca terminados – em suma, os primeiros namoricos com uma língua que, em vez de traiçoeira, como diziam, se me apresentava já fecunda e bela.

Mais tarde, tive a felicidade de o poder confirmar e de perceber o que, a vários níveis, fazem com ela e a partir dela autores tão diferentes como Mário de Carvalho, Miguel Esteves Cardoso ou José Tolentino Mendonça, só para citar alguns nomes que gostaria que nunca parassem de escrever. Ou o que tão recentemente nos deram Agustina Bessa-Luís, José Saramago ou Herberto Helder. Uns e outros fizeram de namoricos uma paixão duradoura. E muitos mais poderia referir na literatura (cada um que elenque os seus), mas regressemos às canções e pensemos no que fez José Afonso e no que ainda nos dá Sérgio Godinho; atentemos na forma como escrevem autores surgidos na última década, como Jorge Cruz, Samuel Úria ou Márcia. E em poucas linhas poderíamos ir ainda – porque, viva e pluriforme, a língua também é deles – aos demais países de língua portuguesa, mas fiquemo-nos por esse colosso produtor de deslumbres, que é o Brasil, e que nos deu, e sem sair da música, Vinicius, Caetano ou Chico Buarque, entre tantos outros talvez não tão famosos.

A língua portuguesa agrega nove países e mais de 260 milhões de falantes. Para além do valor literário, cultural, identitário e comunicacional, que no fundo é aquele de que venho falando, tem arreigado a si um grande valor económico, estimado em 17% do PIB (dados de 2012). Apesar de datar de 1214 um dos primeiros documentos em português, o testamento de D. Afonso II, e de em meados do século XVII ainda ser necessário a Coroa obrigar médicos e farmacêuticos a receitarem e a aviarem os medicamentos em português, nos últimos 500 anos (dados de 2015), a língua portuguesa enquanto língua materna foi aquela que mais cresceu. Hoje, é a mais falada no hemisfério sul, a quinta mais usada na internet (à frente do japonês, do russo, do francês e do alemão, e só suplantada pelo árabe, pelo espanhol, pelo chinês e pela língua líder, o inglês) e também a quinta mais falada no mundo (adiante, por exemplo, do russo, do japonês ou do alemão). Múltipla e variada, a língua portuguesa galopa: estima-se que, em 2050, terá 387 milhões de falantes e, em 2100, cerca de 487 milhões.

Muitos desses quase 500 milhões já nasceram, são hoje crianças, e a maioria ainda está por nascer. E é bom saber que, nesse futuro onde habita o sonho, muitos mais miúdos, como aquele que eu era há trinta anos, vão poder ouvir e ler, melódica em vez de pouco orelhuda, polissémica em vez de traiçoeira, a minha – a nossa – riquíssima língua portuguesa. Tenho a esperança de que, tal como naquele dia os miúdos daquela banda com uma secção arrítmica formada por tachos e panelas concluíram que em inglês não soava mal mas que em português soava muito melhor, também eles principiem uma história de amor com ela e possam ser capazes de admirar e fruir a maravilha que, hoje, felizmente, eu sei que ela é.

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