quinta-feira, junho 4

Sem legendas

Dou por mim a cantar,

Estou de volta pro meu aconchego
Trazendo na mala bastante saudade

sei de cor as canções do Roque Santeiro, uma telenovela brasileira que passou na televisão em 1987, nesse ano os meus pais andavam à procura de uma casa que nos permitisse sair do prédio de retornados, onde vivíamos há mais de uma década, a casa que agora é só da minha mãe e para onde tive de voltar, A ver se nos livramos desta gaiola, dizia o meu pai referindo-se ao pequeno apartamento empoleirado num sétimo andar onde, apesar dos meus protestos, o televisor estava sempre ligado, eu com restos de permanentes e de acne quase a entrar na vida adulta, Não consigo estudar com a televisão tão alta, gritava, eu a um ano de terminar a licenciatura em Direito e sem nunca ter tido um quarto a que pudesse chamar meu,

Por causa da descolonização, explicará prontamente a minha mãe se alguma amiga ler esta crónica e lhe falar nisso, Não fosse a descolonização e nunca lhe teria faltado nada,
eu a tentar concentrar-me, na pequena marquise, e a desistir, acabando por refugiar-me no quarto dos meus pais porque aí sempre havia uma porta e a porta podia ser fechada, eu sentada na cama deles a aprender Direito das Sucessões e da Família, as sebentas e as fotocópias a cobrirem a colcha que tinha sempre motivos florais e um cheiro adocicado que me desagradava, um cheiro a velho, os meus pais eram, então, mais novos do que eu sou agora, será que o meu cheiro se adocicou também?, eu prestes a ser a primeira licenciada da família, a envergonhar-me quando ouvia os meus pais descreverem a casa dos seus sonhos ao sr. Bernardino, o construtor civil, um dos patos-bravos que iam cimentando Cascais a eito, Uma casa com um quintalinho para plantarmos umas couves, pelo menos cinco quartos que já temos um neto e outros virão, não vieram, a minha irmã não teve mais filhos e eu distraí-me de querer tê-los, longe do centro para termos ar puro e podermos ouvir os pássaros, eu zangada por a casa dos meus sonhos ser tão distante da dos meus pais,

Susa Monteiro
Quero viver em Nova Iorque, confessei a um colega de Direito nos intermináveis minutos que antecediam os exames, Em que bairro?, a atenção dele a descair solícita sobre mim, como podia eu imaginar que, O meu tio trabalha nas Nações Unidas, vou lá muitas vezes, em que bairro queres viver?, Não sei, desculpei-me, só conheço a cidade dos filmes, e ele a terminar a conversa com um Ah, mudo de desinteresse,
eu tão perdida de mim, a chegar tarde a esta casa, a casa que os meus pais finalmente encontraram, mas a que eu já não podia pertencer, até que de repente, depois de uma introdução musical que parecia uma cavalgada tropeçante, ouvia-se cantar
Deus e o Diabo na Terra
Sem guarda-chuva, sem bandeira, bem ou mal

(…)
Eu quero a felicidade
Mas a tristeza anda pegando no meu pé

os meus pais e eu sentávamo-nos apressadamente em frente do televisor para não perdermos as peripécias do Roque Santeiro, os meus pais e eu unidos em Asa Branca, uma cidade inventada, a divertirmo-nos com o vilão e iletrado Sinhozinho Malta e com a tonta e corrupta Viúva Porcina, a atriz Regina Duarte que, anos antes, tanta esperança me ensinara ao protagonizar a Malu Mulher,

Começar de novo
E contar comigo
Vai valer a pena
Ter amanhecido

cresci com o Brasil a salvar-me da tristeza salazarenta, a desempoeirar-me a cabeça, as personagens do pequeno ecrã em que mais me reconhecia eram brasileiras, entre elas e eu não havia tradução,
aprendi inglês tarde, já não fui a tempo de me desabituar de ler as legendas, esse ralo longitudinal na base das imagens por onde a minha atenção se escoa,
e as personagens brasileiras pareciam-me menos artificiais do que as das telenovelas portuguesas, era bom confundir a ficção com a realidade,
agora o Brasil foi engolido por Asa Branca, Já não consigo seguir novelas, só vejo isto, diz-me a minha mãe,
isto são as notícias,

Na noite de quinta-feira, quando o Brasil ultrapassava mais um recorde de mortes, com o anúncio de 751 vítimas da Covid-19 em apenas 24 horas,
sei que o sofrimento é uma língua universal,
o Presidente anunciou um churrasco e “uma peladinha” para centenas de convidados,
mas sinto-me mais impotente perante o desrespeito de alguém quando partilho a língua e não há a barreira das palavras entre nós,
o mesmo Presidente que havia declarado, dias antes,
caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria, ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho,
a minha mãe e eu novamente sentadas no sofá, ocupamos os lugares de antigamente, a minha mãe no meio, eu num dos extremos, o Pedro no sítio que era do meu pai, É novela, mãe, não é a sério, queria poder dizer-lhe, tento distraí-la, O que vamos plantar no quintal?,
a minha mãe, tão diferente da mulher que entrou pela primeira vez nesta casa, Ficava feliz só com esta cozinha e com o quintal,

O que dizes de pormos um carreiro de alfaces ao pé das couves, já plantámos erva-cidreira, hortelã-pimenta, poejos, sálvia, segurelha, a minha mãe a mexer carinhosamente a terra e eu a aprender-lhe o jeito e o amor, A terra é tudo o que temos, um prestigiado casal de artistas performativos que conheci em Berlim há uns anos, Queremos comer só o que plantamos, disseram orgulhosos quando me mostraram como haviam deitado abaixo a garagem para fazerem uma horta, Isto é a vanguarda, e eu, sem conseguir confessar quão vanguardistas os meus pais sempre foram,

prefiro pensar que são intemporais,
quem me dera, eternos,
Tens a tua casinha tão arranjada e eu tirei-te de lá, preocupa-se a minha mãe,
a minha casa tem janelas altas viradas para a cidade, as sombras das tipuanas trepam até lá para me avisarem do fim da tarde, só em minha casa consigo ficar desarmada, andar nua e não ter vergonha, ser desarrumada e ainda assim encontrar o que preciso, a minha casa é a minha língua,

Lamento. Quer que eu faço o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre,
o criminoso usa as mesmas palavras que eu e eu não o percebo, um descaro cuspido nas nossas caras, uma dor sem legendas,
Deixa-nos viver dignamente, Bolsonaro,
a mesma língua também tem de servir para sermos uma única e percetível voz clamando,
Deixa-nos viver, Bolsonaro,
se uma mesma língua não serve para isto, então não serve para nada,
Deixa-nos, Bolsonaro.

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