Essa era a sua calada sabedoria: o melhor modo de evitar um conflito é escutar mal. Ou mal escutar, que é ainda mais difícil. Dos dois modos procedia o menino. E dizem que ele chegava ao ponto de acolher a ofensa como se fosse uma prenda. E tinha razão. Há neste mundo melhor que o barro? O que mais pode ser, ao mesmo tempo, terra e água, mão, sede e cântaro?
Não era apenas aquele o único defeito do rapaz. Na verdade, o menino só tinha virtudes que não serviam para nada. Por exemplo: escutava mal a voz humana, mas tinha jeito para ouvir os bichos. Um dia, começou a imitar o canto dos pássaros. E fazia-o com tanto aprumo que o pai teve uma ideia: colocaria o filho a render.
Susa Monteiro |
E o negócio era tão proveitoso que o pai, contra a vontade da mãe, tirou o filho da escola. A mãe tentou contrariar aquele abuso. O marido agrediu-a. E foi assim, durante dias sem fim. No final de cada manhã, o filho regressava exausto. E não restava alma senão para se anichar e adormecer no colo da mãe.
Um dia, enquanto o tinha no colo, a mãe notou-lhe, por entre a espessa cabeleira, um penacho discordante. Era uma penugem que, aos poucos, foi virando pena. Aquela era a sua primeira pluma. À noite, a mulher confessou ao marido a sua apreensão: talvez o esposo tivesse ido longe de mais naquele insólito negócio.
—Tudo, neste mundo, é negócio — sentenciou o marido. — Veja, mulher, veja o nosso casamento — E acrescenta com gravidade policial que havia juros que ela nunca conseguiria pagar. É isso que ele diz. E faz notar como ele a salvou da rua. Dessa noturna rua que, em segredo, a esposa relembra com saudade. Ela conhece a razão daquela raiva. O casamento – que o marido via como uma dádiva – era para ela uma eterna condenação. Se o menino decidira escutar mal as palavras, ela escolhera não se escutar a si mesma. Aquele menino, torto e desajeitado, era a sua única salvação.
Naquela discussão, a mãe pediu ao pai para que moderasse o tom de voz. Não queria que o filho soubesse daquela altercação. — Este teu filho — reagiu o pai — já deixou de ser pessoa. A mãe ergueu os braços em súplica. Não queria ouvir. O marido tinha razão: uma única voz o menino ainda entendia. E era a dela.
Na noite seguinte, a mãe escutou um ruído no quarto da criança. Quando abriu a porta o menino sacudiu os braços e a mãe escutou o farfalhar das penas que já lhe cobriam todo o corpo. Um assobio vazio soltou-se-lhe da boca: a criança despedia-se de vez da palavra. Na penumbra a mãe confirmou, então, como o rosto do filho se desumanizava. Os lábios tinham endurecido e formaram uma espécie de bico. As unhas se alongaram estreitas e curvas.
A mãe fez o sinal da Cruz. Melhor seria, pensou, que o pai não o surpreendesse naquele estado. Dispararia de caçadeira. E uma nuvem de penas seria o que restaria da sua criança.
O que sucedeu, a seguir, conta-se em duas linhas. As asas do menino se abriram, portentosas para confirmar que o menino, o seu menino, era uma ave de rapina. E esvoaçou pela casa, dono daquele doméstico céu.
Naquele momento, o pai acordou e constatou, em pânico, que estava mais escuro no quarto do que dentro do sono. Sentiu um óleo espesso escorrer pelo rosto e entendeu: os olhos tinham-lhe sido devorados. Correu pela casa, cego, implorando por socorro. Tropeçou no próprio sangue, desabou pelo vidro da janela e estatelou-se sem vida no pátio.
A mãe já tinha a mala pronta. Se o marido ainda estivesse vivo, veria a mulher sair de casa, com a bagagem na mão e, no ombro, uma majestosa ave de rapina pousada. No rosto da mulher, se entrevia o luminoso sorriso da vingança.
E dizem os que viram (e há sempre quem jura ter visto) que havia um menino que corria, alegre, ao lado da mulher. E garantem outros que presenciaram o pai a sair de casa, ajustando os óculos no rosto e correndo atrás da esposa. E que chorava, chorava como uma desamparada viúva.
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