segunda-feira, julho 20

Donos de livrarias pequenas do Rio contam como lutam para manter os negócios na pandemia

A reabertura do comércio de rua do Rio, no último dia 27, trouxe uma série de dúvidas para os livreiros. Como lidar com o medo dos clientes de se contaminarem com os produtos? Como driblar o movimento baixo e acomodar os frequentadores em espaços reduzidos? Como reinventar o seu negócio em meio à crise? Para os que optaram em manter as portas fechadas mesmo com a autorização da prefeitura para retomar as atividades, o dilema é ainda mais básico: quando voltar?

Antes mesmo da Covid-19, as livrarias já sofriam com a crise no setor. Mas, enquanto as megalojas fechavam, as menores mostravam um novo caminho, promovendo eventos e um tratamento diferente com o leitor. Acontece que tudo isso foi colocado em xeque com a pandemia. Empresas consideradas cases de sucesso, como a Blooks, com seis lojas (três no Rio, duas em São Paulo e uma em Niterói), estão sofrendo para se manter (aliás, a Blooks acaba de abrir financiamento coletivo: benfeitoria.com/blooksresiste).

Com a pandemia, parei de ver (a livraria) como um negócio e voltei à marca de 25 anos atrás, quando comecei no mercado editorial e achava que os livros podiam mudar o mundo. Não é mais uma planilha, são os nossos sonhos
Martha Ribas (Janela)

As histórias que contamos aqui dão noção da dificuldade em manter um negócio de livros em tempos de coronavírus. Optamos em retratar o cotidiano de cinco livrarias que possuem apenas uma loja. Tem de tudo um pouco: um espaço recém-inaugurado (Janela), uma loja icônica que se confunde com a trajetória da cidade (Leonardo da Vinci), a namoradinha da intelectualidade carioca (Folha Seca), um sebo tradicional (Berinjela), e um símbolo da resistência local (Beco das Letras). Em comum, drama, luta (muitas vezes solitária) e um amor incondicional pela profissão.

Daniel Chomski (Berinjela)
Assim que anunciou que estava fechando temporariamente a Leonardo da Vinci naquela tarde de 18 de março, Daniel Louzada caiu no choro. Mas, mesmo consciente da gravidade do momento, ele não imaginava a carga emocional que ainda o aguardava.

— Os quatro últimos meses administrando a livraria em meio a uma pandemia me ensinaram tanto quanto os 22 anos como livreiro — diz o dono da tradicional casa do Centro do Rio, fundada em 1952 e adquirida por ele em 2016.

Para além dos dramas financeiros, Louzada teve uma dura luta com a solidão e a saudade. Como contou em um post no blog da livraria, sentiu falta “das pessoas que conheço e não conheço, do cheiro do café, das conversas, das interrupções, da casa cheia e dos debates, do homem que invadia a loja esbaforido”. O post viralizou na semana passada, e o livreiro recebeu mensagens do Brasil todo, e até mesmo uma doação de álcool gel de um grupo de professores da UFRR. Como uma orquestra de um homem só, lidou com a multiplicação das tarefas burocráticas, das novas exigências das vendas on-line (estas últimas ajudaram a pagar contas básicas). A livraria não parou totalmente no período em que ficou fechada, mas viu seu faturamento cair 60%. Desde a sua reabertura, no último dia 6, o movimento segue baixo. A antes movimentada galeria da Avenida Rio Branco em que funciona é agora vista por seu dono como “uma cidade fantasma”:

— Não tem mais aquele cliente que vem flanar. A vivacidade e o diálogo, tudo aquilo que uma livraria permite, sumiram de uma vez só.

Mesmo operando no limite, Louzada se inspira na história gigante da livraria, que já sobreviveu a crises financeiras e até à perseguição da ditadura em outras administrações.

— Me apoio nos ombros dos gigantes que estavam aqui antes. Vem daí a minha força: é a ligação com os livros.

A pandemia pegou no contrapé as sócias Leticia Bosisio e Martha Ribas, donas da Janela. Elas abriram a livraria do Jardim Botânico no dia 13 de março, dias antes do decreto emergencial que levaria ao fechamento do comércio do Rio de Janeiro. Um grande balde de água fria, não apenas por interromper bruscamente o negócio recém-inaugurado, mas por também inviabilizar todo o conceito que o originou. Nascida em meio à crise de megarredes como Fnac e Saraiva, a Janela chegou propondo um modelo diferente, privilegiando o encontro e a curadoria refinada. Seu diferencial estava nos eventos e espaços de lazer. O clima caloroso que se seguiu aos primeiros dias da inauguração, com o café lotado, área para brincadeiras infantis e um auditório para 30 pessoas, era o avesso do isolamento social.

— Quando abrimos uma livraria, sabíamos que era uma luta, mas uma luta viável — diz Leticia. — A pandemia mudou tudo. Vínhamos num pique ótimo nos primeiros dias, só que o modelo ficou inviável.

Após um período alternado entre ansiedade e respiro, a livraria reabriu na última segunda completamente reinventada. Boa parte da clientela ainda tem medo de entrar e prefere ficar na calçada. Outros têm medo de beber o café da casa na xícara e preferem no plástico. A área infantil e o auditório estão fechados. Para piorar, as máscaras dificultam a identificação dos habitués. Mas o entusiasmo das proprietárias é o mesmo.

— Com a pandemia, parei de ver como um negócio e voltei à marca de 25 anos atrás, quando comecei no mercado editorial e achava que os livros podiam mudar o mundo. Não é mais uma planilha, são os nossos sonhos — diz Martha.

Nos últimos dias, Rodrigo Ferrari vem tentando colocar em prática um esquema digno de federação de futebol profissional. Tudo pela volta do time da Folha Seca, que realiza peladas com os amigos da livraria homônima.

— Antes de cada pelada os jogadores precisam responder questionários para saber quem pegou Covid ou não. E também estamos querendo comprar termômetros para medir a temperatura de todos — diz Ferrari, que há 17 anos toca o estabelecimento no número 37 da Rua do Ouvidor (entre 1998 e 2003, ele funcionou no Centro de Arte Hélio Oiticica).

Calma, leitor. A pauta aqui continua sendo a volta das livrarias, não a do futebol. Mas é impossível falar da Folha Seca sem tratar também das outras atividades que gravitam em torno dela. Ao longo dos anos, a casa virou ponto de encontro da intelectualidade carioca ao promover rodas de samba, lançamentos de livros e, claro, peladas. Não é preciso dizer, portanto, que a pandemia atingiu a própria razão de ser do estabelecimento, fechado desde 18 de março. Ferrari planeja reabrir a casa em algum momento da semana que vem, mas sabe que as coisas não voltarão iguais.

— Pelo que tenho acompanhado do comércio na região, o movimento anda bem fraco — lamenta.

Símbolo da livraria “presencial”, a Folha Seca começará a se voltar também para o virtual. Um pouco na marra, diga-se de passagem.

— Meu site está em construção há 20 anos — brinca Ferrari. — Sempre fui da rua... Mas agora será inevitável reforçar as vendas on-line.

Enquanto não incrementa o site, o livreiro se vira para entregar os pacotes que vendeu antecipadamente num crowdfunding. A campanha aliviou a barra financeira, mas agora são muitos os livros e discos que precisam ser enviados aos que ajudaram. O livreiro também se ocupa com as vendas das obras de sua editora homônima.

— A pandemia não atingiu apenas as livrarias. A preocupação é com toda a cadeia do livro, das gráficas ao distribuidor. Todos estão sofrendo.

Daniel Chomski cansou de ouvir alguns termos clichês da pandemia. O dono da Berinjela, tradicional sebo que existe desde 1994, na Rio Branco, não quer saber de “novo normal”. Mas admite que precisou se “reinventar” nos últimos meses, ampliando ainda mais as vendas online e o serviço de delivery através de marketplaces como a Estante Virtual e a Amazon. Sua vantagem, acredita, é ter começado esse movimento bem antes da Covid-19.

— Se, antes da pandemia, eu não tivesse montado uma equipe básica para atender serviços de venda on-line e delivery, teria ficado para trás — avalia Chomski. — Seria muito mais difícil reverter a situação. Eu só consegui me manter porque intensifiquei o que já fazia antes.

No dia 29 de junho, o livreiro reabriu a casa sob cuidados especiais (ele mantém um funcionário apenas para higienizar os produtos) e pouco movimento. A falta maior é daquele cliente que aparece para procurar um livro ao acaso, o famoso flaneur de sebo. Hoje, quem cruza a porta é aquele leitor que já sabe o que quer e vem fazer uma compra rápida. A rotina vai sendo retomada aos poucos, “com muito carinho”, conta o livreiro. Muitos habitués aproveitam para contar histórias sobre perdas familiares. Já a procura por livros sobre fim do mundo e epidemias aumentou.

Enquanto não revive o ambiente da pré-pandemia, Chomski tem apostado nas redes sociais para divulgar as vendas on-line.

— Não basta fotografar um monte de livro e postar. Tem que ter um trabalho de curadoria — defende.

Para ele, a pandemia desnudou uma realidade do mercado brasileiro:

— O comércio varejista não se prepara para crises. Porque ele, no geral, não tem como se preparar. Dessa vez, infelizmente, nos defrontamos com algo que, para muitos, está acima de qualquer possibilidade de reação.

O mundo da livreira Rita Peixoto desabou. E de forma quase literal: dias antes da pandemia virar uma realidade no Rio, o teto da sua livraria caiu, castigado por chuvas torrenciais que duraram todo um fim de semana. A obra para recuperar a Beco das Letras, instalada desde 2014 no segundo andar de um sobrado na Cruz Vermelha, custou 60 mil reais à proprietária. Rita precisa pagar a última parcela ainda em julho, após quase quatro meses fechada por causa do surto de Covid-19. Desde segunda-feira, a livraria voltou a funcionar à “meia porta”, com a clientela atendida do lado de fora.

— Voltei quebrada — lamenta Rita. — Já estava ferrada de dinheiro, tentando projetar coisas para poder reverter, e aí veio mais essa.<

Livraria essencialmente voltada para a comunidade local, a Beco das Letras só sobrevive graças a uma rede de amigos e habitués, que durante a pandemia tem ajudado a loja com divulgação e boca a boca. Tudo funciona de uma maneira afetiva e pessoal. Os funcionários são pessoas próximas da dona, o que só dificultou na hora de cortar o salário durante o fechamento.

Não é, claro, o primeiro momento difícil enfrentado pelo Beco das Letras. Mas é, segundo a Rita, o pior da sua história. Em 2013, ela se mudou do seu endereço original, na Urca, em função da crise imobiliária. Com isso, trocou um espaço de 30m2 para outro de 140m2, onde passou a promover os saraus e lançamentos que se tornaram a maior fonte de lucro da empresa.

Com o fechamento, Rita passou a depender exclusivamente de entregas na região.

— Tem que repensar em como dar conta de tudo, mas a vontade mesmo é de ficar trancada em casa, sentadinha na cama, esperando passar.

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